“Todo dia, nos vemos diante da demanda de colocar nosso corpo e nossas ideias em algum tipo de ordem, de otimizar nossa vida sexual, de reproduzir a imagem de ‘estabilização’”, escreve a psicanalista americana Jamie Webster em “Sexo e Desorganização”, que chega ao Brasil pela editora Ubu.
No livro que reúne 19 ensaios sob o fio condutor da desorganização, Webster explora diferentes aspectos do sexo que, para ela (e Freud) nunca é só sobre o prazer carnal.
E não é a tal ponto que Webster busca na desorganização que parece reger o sexo uma leitura para a democracia. Para a autora, as tentativas de restringir e controlar o sexo são instrumentalizadas por forças antidemocráticas.
Na prática, são forças como o presidente americano Donald Trump, que ataca os direitos reprodutivos e sexuais a bel prazer em seu segundo mandato. “Se importar com esses aspectos [da sexualidade] hoje significa ir contra muitas forças repressivas”, diz Webster em entrevista à Folha.
“É uma loucura pensar que a realidade atualmente é esse esforço por uma norma heterossexual contra as minorias”, afirma. É um ataque que ela credita como efeito-rebote de 50 anos de avanço nos direitos sexuais e reprodutivos. “Houve mudanças muito radicais e muito rápidas no reconhecimento da diversidade sexual, do quão complicada é a sexualidade e na ideia de consenso.”
Sexo não é assunto novo na psicanálise —na verdade, está mais para um de seus fundamentos. Webster lembra que Sigmund Freud (1856-1939) usava a sexualidade para descrever temas diversos. “Freud disse que via a civilização como possibilidade de reconhecimento das formas diversas de sentir prazer por pessoas que precisam ser reconhecidas socialmente”, diz Webster. “Não tem apenas uma forma de exercer a sexualidade. Nesse ponto, existem 9 bilhões de formas.”
A recusa em reconhecer certos aspectos da sexualidade gera repressão e acaba detonando em pulsão de morte. “Uma vida ética implica em reconhecer a vida sexual.”
A psicanálise, ela diz, “infelizmente” acaba sendo uma forma de ajudar pessoas individualmente a navegar esses problemas coletivos.
Um dos problemas coletivos que Webster considera importante hoje é a ideia de masculinidade tóxica, conceito que engloba o comportamento exagerado de reforçar traços de dominância masculinos. A psicanalista rejeita o termo por completo.
“Está sendo usado contra indivíduos e começa a se espalhar como se todos os homens fossem tóxicos. E eu acho isso perigoso. É uma generalização que condena uma parcela enorme da população.”
Ela diz que melhor seria indagar o que é a masculinidade, como ela é formada e como os homens podem ser melhores. Acima de tudo, quais são as instituições que apoiam o mau comportamento masculino. “Essas instituições são tóxicas. Não os homens”, afirma Webster.
É uma versão desenvolvida do mote “nem todo homem” sob o qual muitos protestaram nas redes sociais contra críticas generalistas que englobavam homens como a escória da humanidade. Hoje, o mote foi ironizado a ponto de se tornar um meme. É uma situação similar a que Webster diz presenciar entre seus alunos e pacientes.
[O conceito de masculinidade tóxica] Está sendo usado contra indivíduos e começa a se espalhar como se todos os homens fossem tóxicos. E eu acho isso perigoso. É uma generalização que condena uma parcela enorme da população
“Jovens meninos e meninas estão ficando apavorados com relação à sexualidade como um todo. Isso não vai beneficiar ninguém a longo prazo”, diz.
A atmosfera de terror, para a psicanalista, é um efeito-rebote de movimentos como o MeToo, em que celebridades foram a público denunciar seus casos de abuso e assédio sexual. “Ninguém ouvia as mulheres então elas precisavam coletivizar suas vozes”, diz, “é insano que para acreditarmos nas mulheres, precisemos de atrizes”.
Ela avalia o MeToo como um movimento importante para fazer correções necessárias nas instituições que perpetuavam abusos e assédios. Mas, como consequência, alguns limites foram extrapolados e se criou um senso de censura e vigilância.
A eleição de uma figura como Trump, ela diz, é uma resposta a esse movimento. “É uma pessoa que diz que não vai deixar ninguém censurar e que todos vão poder falar o que quiserem.”
“O que Trump oferece é que homens estejam novamente no poder para ter a lei como aliada e poder expressar seu ódio às mulheres e minorias”, afirma.
A saída é pela fala mesmo. E Webster acredita no diálogo. Ela diz que homens e mulheres precisam falar sobre seus medos. “A experiência sexual de desorganização é parte do encontro com o outro.”
Falta tanta conversa, ela diz, que acontecem fenômenos curiosos, como o aumento da prática de enforcamento no sexo nos campi universitários. Na hora de entender de onde vem esse aumento, ela pensa em várias possibilidades: pornografia, talvez. Mas descobriu-se que as pessoas que praticavam o enforcamento faziam quase por inércia —sem perguntar, elas achavam que era o que o outro queria.
“A capacidade de satisfação de alguém é inteiramente individual”, ela diz. “E não estou falando só do que te excita ou não.”
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