Avesso a Carnaval, tomei conhecimento tarde demais de que o enredo da campeã Viradouro é “Malunguinho, o Mensageiro de Três Mundos”. Reis Malunguinho, quem diria, uma das entidades encantadas do livro que me ocupou pelos últimos três anos. Mas a Viradouro chegou antes, desfilando na madrugada desta segunda-feira (3) uma figura central na história e no imaginário do Nordeste, que o restante do Brasil ignora.
O livro em que tratei de reverter minha própria ignorância se chama “A Ciência Encantada de Jurema – Como uma raiz da caatinga uniu indígenas e africanos na resistência anticolonial e hoje inspira pesquisas psicodélicas”. (Um aperitivo pode ser encontrado na série “A Ressurreição da Jurema”.) Sai em meados de abril pela Fósforo, que publicou também “Psiconautas – Viagens com a ciência psicodélica brasileira” (2021).
Fiquei encantado, sem trocadilho. Os três mundos de que fala o enredo estão presentes no título do livro: o sertão dos povos originários da caatinga, a África dos escravizados que deram seu sangue nos canaviais da zona da mata nordestina e a Europa dos brancos colonizadores.
Desse encontro violento de culturas e espiritualidades nasceu o catimbó, religião de matriz indígena sincretizada com elementos da encantaria africana, da magia ibérica e do catolicismo popular. No cerne está a árvore jurema-preta (Mimosa tenuiflora), cuja raiz contém N,N-dimetiltriptamina (DMT), a mesma substância psicodélica presente na ayahuasca.
Com ela se prepara o vinho da jurema, erva sagrada de que fala o samba-enredo. Dele já falava José de Alencar no romance “Iracema”: “Araquém decreta os sonhos a cada guerreiro e distribui o vinho da jurema, que transporta ao céu o valente tabajara”.
Perseguidos pela Inquisição, pela Coroa, pelo Império, pela polícia e ainda hoje por cristãos fundamentalistas, o culto da jurema e seu vinho sobreviveram e ainda hoje são consagrados em aldeias e terreiros do Nordeste. A bebida raramente tem efeito psicodélicos, nos dias atuais, por razões que explico no livro.
Mesmo quando a beberagem não é consumida nas cerimônias, cânticos em seu louvor e à cabocla do mesmo nome são acompanhados de incorporações de encantados. São os Mestres e Mestras da Jurema Sagrada, nome mais usado no presente, em lugar de catimbó. Reste nome adquiriu conotação pejorativa em terras nordestinas, mas já foi objeto da atenção de Mário de Andrade (em “O Turista Aprendiz” e “Música de Feitiçaria”) e Luís da Câmara Cascudo (em “Meleagro).
“Não temo o inimigo / Galopo na estrada / A noite é abrigo / Transbordo a revolta dos mais oprimidos”, diz a letra do samba de Paulo César Feital, Inácio Rios, Marcio André Filho, Vaguinho, Chanel, Igor Federal e Vitor Lajas. “Eu sou caboclo da mata do Catucá! / Eu sou pavor contra a tirania! / Das matas, o Encantado / Cachimbo já foi facão amolado / Salve a raiz do Juremá!”
O samba também fala em corpo fechado, ritual para tornar a pessoa invulnerável a inimigos e feitiços a que se submeteu o próprio Mário, em 1928. Foi num terreiro do bairro Redinha, em Natal (RN), como descreve nesta passagem impagável:
“Não escorreguei no areão, não quebrei a perna, nenhum cachorro latiu pra mim, nenhum cangaceiro existia em Natal, porque o meu corpo, pela força musical dos deuses estava fechado para sempre contra as injúrias dos ares, da terra, de debaixo da terra e das águas do mar. Preço: trinta mil réis.”
Vários pontos de Jurema celebram Malunguinho como guerreiro preto invencível, líder do quilombo de Catucá, Pernambuco. Carrega o curioso título de Reis, no plural, talvez porque a alcunha passava de chefe em chefe do quilombo, o último deles morto em 1835, e quando se encantou como Mestre carregou para os reinos da Jurema essa pluralidade majestosa.
A Jurema Sagrada merece como poucas a condição de religião brasileira: mestiça, montada na força das plantas, resistiu nas matas ou entre quatro paredes a séculos de repressão, unindo as divindades e os ancestrais dos sertões nordestino e africano na luta pelo direito de existir. Brilhará na avenida hoje, com 70 juremeiros pernambucanos fechando o desfile da Viradouro,
Sono nirê mafá, sobo nirê, Malunguinho.
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