O paradoxo é este mesmo: não há como dizer tudo sobre o amor, tampouco escapamos da necessidade de tentar fazê-lo. Condição da nossa existência, sem a qual não chegaríamos a nos constituir psiquicamente e sequer sobreviveríamos.
Reconhecer que os seres que, infelizmente, dominaram o planeta dependem de tão insólito recurso soa desconcertante. O amor se transmite em cadeias, nas quais quem recebeu seu quinhão o passa para os demais e assim sucessivamente, nos obrigando a depender uns dos outros.
É claro que, sob o guarda-chuva da intensidade afetiva que nos une, podem-se encontrar relações das mais diferentes qualidades. Teremos desde o amor que tenta se fazer provar por meio da violência até suas expressões mais magnânimas.
A ambivalência, presente em qualquer relação humana, é a variável em jogo aqui. Quanto mais ambivalente a relação, mais estaremos do lado das violências —embora nem sempre sejam tão explícitas a ponto de deixarem marcas no corpo.
Nosso nível de tolerância ao ódio que vem junto com o amor tem relação com a “cartilha afetiva” na qual fomos forjados. Daí a tendência de repetirmos padrões de sofrimento sem perceber, achando que a vida é assim mesmo.
Leva um tempo para reconhecermos que um comportamento é inaceitável se ele não é muito diferente daquele que se aprendeu dentro de casa enquanto crescíamos. Demora porque temos que reconhecer a violência, admitir que poderia ser diferente e acreditar que somos merecedores dessa diferença. São alguns dos passos que uma análise se presta a percorrer.
Quem não teve um amigo amado, mas ambivalente e traíra, tolerado até o limite de um insight? Livrar-se dele não é um ato isolado, é uma tomada de posição radical diante do que entendemos por amor ao outro e a nós próprios. O amor pouco ambivalente é aquele no qual se tem tanto crédito que os inevitáveis deslizes da convivência são resolvidos sem deixar ressentimento.
Não existe uma dívida estrutural, digamos assim, que se arrasta nos subterrâneos e que as eventuais falhas vêm cutucar. Apenas a dureza do cotidiano, os limites das relações, as impossibilidades intrínsecas à comunicação humana —o que não é pouca coisa.
O podcast The Daily, do NYT, entrevista uma mulher que se apaixonou pela IA e mantém um relacionamento estável com o algoritmo. Cada vez que a tecnologia apaga a “história” pregressa “deles” —carregada de sexting e fantasias sexuais—, a pobre colapsa emocionalmente. Essa relação narcisista a satisfaz na mesma medida em que a infantiliza, pois o amor só é livre de ambivalência pelos olhos de um bebê.
O amor dói também por outra razão óbvia: quanto mais amamos, mais garantido está que sofreremos diante da sua perda inevitável. Afinal, mesmo sem separações contingenciais, da morte ninguém escapa.
Por essas razões, e algumas outras que não couberam aqui, nos acovardamos diante do amor —a forma mais necessária de interação humana. Se existe algo verdadeiramente revolucionário no mundo hoje, perante o qual não podemos recuar, é o amor e seu correlato, o cuidado.
Supostos erroneamente como qualidades femininas, amor e cuidado são as bandeiras pelas quais homens e mulheres deveriam lutar. O resto é ódio.
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