Qual a diferença entre grandes nomes da literatura, como Shakespeare, Emily Dickinson, T.S. Eliot, Sylvia Plath, e o ChatGPT? Para leitores não especializados, aparentemente, nenhuma.
Foi o que demonstrou um estudo publicado pela revista Scientific Reports. Mas o detalhe realmente fascinante? Os participantes da pesquisa afirmaram preferir os versos criados pela Inteligência Artificial, considerando-os mais inspiradores e comoventes.
O estudo não apenas confirma que estamos cada vez mais incapazes de distinguir criador e criatura, mas que a sociedade parece ter abraçado de vez a cultura do consumo rápido, eliminando qualquer vestígio de complexidade intelectual em nome da praticidade.
Não é coincidência que brain rot —ou “cérebro apodrecido”— tenha sido eleita a palavra do ano pela Universidade de Oxford, em 2024.
Enquanto nos alimentamos com conteúdos ultraprocessados para a mente, afastamo-nos da essência que nos torna verdadeiramente humanos: a capacidade de pensar criticamente.
E os números não perdoam. Segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, a maioria da população já abandonou o hábito da leitura. Pior ainda: nos últimos quatro anos, assistimos à preocupante debandada de quase sete milhões de leitores —um esvaziamento silencioso da reflexão, um retrocesso disfarçado de progresso.
A pergunta que persiste é: sem leitura, como edificaremos um vocabulário sólido, um repertório capaz de decifrar a complexidade da sociedade e —veja só— uma interpretação minimamente lúcida da realidade?
Ler demanda concentração, uma virtude em vias de extinção. Exige retidão, essa fatigante e subestimada arte de sustentar o pensamento sem a muleta de estímulos intermitentes piscando a cada fração de segundo. Requer disciplina cognitiva para processar ideias sem o auxílio de uma enxurrada de cores e sons mastigados e condensados.
O problema não é que a leitura seja enfadonha; é que nos tornamos tão irremediavelmente dependentes do consumo passivo e da informação pré-digerida que o mero ato de raciocinar por conta própria já nos parece um fardo insuportável.
Confinados em bolhas digitais e reféns de algoritmos que apenas ecoam nossas convicções pré-moldadas, estamos nos transformando, com assustadora rapidez, em uma civilização incapaz de enxergar além das fronteiras do próprio feed — um universo filtrado, onde a ilusão de conhecimento substitui a verdadeira compreensão do mundo.
A resposta a isso não reside em renegar nossa própria criação. No entanto, sem o devido senso crítico e a argúcia analítica —virtudes cultivadas pela leitura— reduzimo-nos a meros operadores de tecnologia, esvaziados da aptidão essencial para criar, evoluir e inovar.
A leitura nos ajuda a compreender e agir perante múltiplas realidades, sendo uma das ferramentas mais poderosas para estimular o pensamento crítico e a criatividade. Sem ela, estaremos condenados a um grande sertão, empobrecidos pela linguagem seletiva e restrita de algoritmos e feeds.
Criamos um novo modelo de linguagem, mas, ironicamente, corremos o risco de nos tornarmos incapazes de comandá-lo, à medida que nos afastamos de um hábito que aguça a concentração e forja o pensamento crítico, analítico e inventivo. Escuto, nítida e implacável, a voz de Drummond rasgando o silêncio, ecoando em gritos lancinantes: “E agora, José?”.
E se, no final das contas, formos nós o próximo Dr. Frankenstein, perseguidos pela criatura que fabricamos — ou, pior, entretidos demais pelo TikTok para sequer percebermos?
O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço “Políticas e Justiça” da Folha sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Lúcia Regina Moioli foi “This Is Who I Am”, de Third Day.
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