Tudo começou com um vídeo no TikTok no qual Alberto Chab, ainda com pouca intimidade com a câmera, fazia um convite. “Sou um médico de 97 anos e estou tentando formar um grupo com pessoas de mais de 90 anos para trocar experiências sobre por que e como nós chegamos a uma idade tão avançada.”
Era abril de 2024, e a despretensiosa ideia ensinou ao psicanalista o tamanho do alcance que podem ter as redes sociais. Em poucos dias, mais de 1.500 mensagens chegaram à sua caixa de email. Os remetentes eram seu público-alvo, os noventões, ou parentes deles, que em boa medida narravam a solidão na vida desses argentinos.
O longo processo de seleção terminou em uma iniciativa que a cada 15 dias se reúne no prédio no qual Chab vive em Buenos Aires: um grupo de cerca de dez idosos com mais de 90 anos. “As únicas coisas sobre as quais não se pode falar são política e religião. De resto, falamos de tudo: ginástica, alimentação, pessoas que mudaram nossas vidas.”
Chab concede essa entrevista em seu consultório, uma sala dentro de seu apartamento, onde ele ainda trabalha —por opção. Se outrora ele trabalhava mais de dez horas por dia, agora organizou uma agenda seleta de atendimentos de dez horas por semana.
Em partes da casa, são vistas obras de seu irmão caçula Víctor Chab, um dos maiores nomes do surrealismo argentino que morreu no ano passado, aos 94 anos. Enquanto transcorre a conversa, escutam-se os calmos passos de Mary, a companheira de Chab.
Uma amiga de longa data, María Elena Giménez, 92, tornou-se sua namorada após os dois enviuvarem; ele com mais de 90 anos, ela com mais de 80. As famílias dos dois celebraram.
“Não há possibilidade de solidão, porque compartilhamos tudo. Falamos de tudo, cozinhamos juntos, caminhamos juntos, fazemos palavras cruzadas e, se um dos dois lê um bom livro, recomenda ao outro.” Mary também compõe o “Noventa e Contando”, o grupo dos noventões fundado por Chab.
Se antes ele tinha pouca intimidade com as câmeras, isso mudou. Chab é o mais presente nas publicações que o grupo faz com a ajuda de uma assistente em suas redes sociais, nas quais tem milhares de seguidores —277 mil no Instagram e 145 mil no TikTok. Já foi convidado para palestras no exterior.
Sua iniciativa colocada de pé aos 97 anos coroa uma vida de trajetória profissional muito bem sucedida —formado médico pela prestigiada UBA, a Universidade de Buenos Aires, ele é um nome reconhecido entre seus pares e teve entre seus pacientes os mais variados perfis, incluindo autoridades da Casa Rosada— mas também marcada por percalços, sobre os quais fala com detalhes de uma firme memória.
Chab nasceu em Cuba e chegou à Argentina aos 5 anos de idade. O psicanalista é filho de pais judeus sírios, um comerciante e uma deserdada herdeira de um império de diamantes que decidiu deixar o conforto de Damasco para trás, rumo à genérica “América” dos anos 1910 ao lado do marido. Parada final: a pequena ilha caribenha.
Ali, porém, dois dos seus irmãos morreram de disenteria. “Era a era pré-antibiótica, e isso me marcou para sempre. Meus pais disseram: ‘Vamos embora de Cuba de qualquer maneira’.” Foram, então, à Argentina.
Mas era o início dos anos 1930, e o país que vivia seu ápice e era apelidado de “celeiro do mundo” por sua enorme produção de trigo e farinha não fugiu à regra na crise econômica mundial. O pai de Chab não encontrava trabalho, a família se viu na miséria, e ele e seu irmão mais velho tiveram de trabalhar, ainda crianças.
“Fomos à feira vender de tudo: bugigangas, grampos de cabelo, elásticos, carretéis, agulhas. E com um peso que ganhávamos, ajudávamos a alimentar a família”, narra ele.
Com o passar dos anos, a situação econômica do país melhorou e a família Chab prosperou, ainda que seu pai tenha gozado disso por pouco tempo: morreu antes de Alberto completar 10 anos, ao redor dos 60.
Vem desse cenário de privações o ensinamento que, para ele, ajudou a chegar aos 97 anos de idade ativo e lúcido. Não se trata de uma receita milagrosa, mas de uma forma de ação: kapará, uma palavra hebraica que tem mais de um significado, mas é usada comumente no cotidiano dos judeus sefarditas para lidar com coisas que saem de maneira indesejada.
[Kapará] É um ditado popular que significa: quando acontecer algo ruim, não demos importância, superemos
“É um ditado popular que significa: quando acontecer algo ruim, não demos importância, superemos”, diz Chab, que aprendeu o conceito com os pais na prática, mas não na teoria. “Se quebrei um prato, bom… Kapará! Na próxima vez não deixarei isso acontecer. O único fator para o qual não existe kapará é a morte.”
“Isso me ajudou muito a entender que tudo era superável. E tem muito a ver com o que entendi depois de me tornar médico. Quando alguém tem inconvenientes e fica amargurando isso, se angustia muito, libera muito cortisol, o hormônio do estresse. O cortisol é mortal, especialmente quando dura muito tempo.”
Na época de privações, a família viveu um período no cosmopolita bairro de San Telmo, hoje ponto de parada de turistas que comparecem para tirar foto com a estátua de Mafalda e seus amigos Susanita e Manolito.
Ali havia uma importante concentração de imigrantes da Europa que deram origem ao lunfardo, produto da mistura de várias línguas que hoje possui cerca de 6.000 palavras e que foi eternizado em diversas letras de tango.
Chab fala o lunfardo, esse léxico ao qual pertencem expressões corriqueiras no espanhol que se fala em Buenos Aires, como “pibe” (algo como “garoto”). E não é raro que os noventões da capital argentina também falem.
Ele e seus companheiros do grupo “Noventa e Contando” são uma pequena fração dos mais de 220 mil argentinos com mais de 90 anos. Na América Latina e no Caribe, esse número salta para 1,6 milhão. É uma parcela que tende a se alargar: a expectativa média de vida ao nascer na região, hoje de 75,7 anos, chegará a 83,5 daqui a 50 anos segundo as projeções da ONU.
Atualmente, a pessoa mais velha do mundo é a freira gaúcha Inah Canabarro Lucas, de 116 anos. Mas outra brasileira, Deolira Glicéria Pedro da Silva, uma bisavó que vive no interior do Rio de Janeiro e afirma ter 120 anos, está se apressando para ser reconhecida como a pessoa viva mais velha do mundo pelo Guinness World Records. No Brasil, vivem ao menos 14 supercentenários, pessoas com mais de 110 anos.
Enquanto isso, o número de nascimentos diminui, uma tendência do mundo atual que desenha para o futuro uma sociedade com cada vez pessoas mais velhas que também querem debater sobre os seus direitos e as formas de manter ou adquirir qualidade de vida.