Uma busca rápida por autocuidado no Instagram resulta em um mar de mensagens motivacionais –elogie a si mesma! seja gentil consigo hoje!– e fotos de pessoas, geralmente mulheres, em spas, fazendo máscaras faciais deitadas em edredons fofos ou tomando chás gelados. As imagens são acompanhadas da hashtag selfcare (autocuidado, em inglês), que ultrapassa os 90 milhões de postagens.
A palavra também é figurinha carimbada da indústria do bem-estar. Sites como Amazon e Beleza na Web vendem kits de autocuidado, que incluem cremes, toalhas, velas e difusores de aromas.
É um retrato da ideia de autocuidado que torna difícil acreditar que a preocupação seja tão antiga quanto a filosofia grega.
Em uma entrevista publicada em 1987 no periódico acadêmico Philosophy & Social Criticism, o filósofo francês Michel Foucault afirma que a ideia do cuidado de si permeia o pensamento desde Platão e os estoicos, na antiguidade, mas que sofreu mudanças ao longo da história até chegar num ponto em que era vista como suspeita, principalmente durante o domínio cristão. O francês resgata e desenvolve a ideia em “A História da Sexualidade”, da década de 1970.
“Cuidar de si era, em determinado momento, denunciado como uma espécie de amor próprio, um tipo de egoísmo ou autointeresse em contradição ao auto-sacrifício necessário para o cuidado do outro”, disse o filósofo.
Foucault enfatiza que a liberdade individual tinha importância vital para o pensamento grego e que cuidar de si, seja na forma de trabalhar em melhorias, se superar ou controlar os próprios impulsos.
A percepção tem fundamentos científicos. As práticas de ioga e meditação, por exemplo, foram associadas a uma série de melhorias na saúde mental e física em pesquisas científicas e são amplamente conhecidos os efeitos de boa alimentação e exercícios físicos.
Quem entendeu cedo esses efeitos, e popularizou o conceito na forma de políticas voltadas à comunidade, foi o Partido dos Panteras Negras, organização americana e marxista que advogava pelos direitos dos negros. O FBI investigou e infiltrou as atividades do grupo durante partes de sua existência, que foi de 1966 a 1989, e chegou a classificar a entidade como a maior ameaça para a segurança interna dos Estados Unidos.
Para os Panteras, o autocuidado não se traduzia spas e máscaras faciais, mas em práticas de saúde, física e mental, levadas a cabo por indivíduos. E a inclinação do movimento para o cuidado é, segundo o professor de saúde pública da Columbia University (EUA) e ex-Pantera Negra Robert Fullilove, ofuscado pelas atividades de direitos civis do grupo.
“Foi o primeiro grupo da comunidade negra a insistir em uma agenda de saúde pública”, diz. “Havia um foco no desenvolvimento da comunidade, um dos motivos pelos quais eles [Panteras] decidiram promover e fundar centros de bem-estar.”
Fullilove lembra que a expectativa de vida dos americanos negros era bem inferior à dos brancos –fato que perdura até hoje. Um artigo divulgado pelo National Health Institute, em 2022, sugeria que, em 2019, a expectativa de vida para negros era 75,3 anos e para brancos, 78,9 anos.
Os centros de saúde fundados pelos Panteras se dedicavam a problemas que acometiam, principalmente, a comunidade negra, como anemia falciforme, doença para a qual eles faziam testes gratuitos. Era uma estratégia para garantir maior qualidade de vida e atendimento adequado.
“Qualquer um que esteja interessado em mudar o mundo deve aprender a cuidar de si”, afirmou a filósofa feminista Angela Davis, que participou do Partido dos Panteras Negras. A fala é creditada a um discurso feito na Califórnia em 1981 e há registros da ativista repetindo a ideia ainda na década passada.
Segundo Davis, o autocuidado foi escanteado nos movimentos sociais. “Ativistas não achavam importante pensar no que comiam, na sua saúde mental, no autocuidado espiritual”, diz, em um vídeo de 2018.
A filósofa conta que começou a fazer ioga e a praticar a meditação quando estava presa, em 1970, e que ativistas dos Panteras Negras incentivaram a prática entre si.
Segundo Fullilove, as filosofias e religiões orientais tiveram papel fundamental na percepção de que o bem-estar era um objetivo válido. “Americanos pensavam em bem-estar como ausência de doenças”, diz ele. “Esse movimento teve a ver com a ideia de que o bem-estar é central para a saúde da alma.”
A conexão dos movimentos pelos direitos da população negra com filosofias do oriente remonta a Martin Luther King e o compromisso com a não violência, herança do líder indiano Mahatma Gandhi. “O movimento pelos direitos civis é um movimento cultural”, diz Fullilove, “e, de repente, a forma tradicional de fazer as coisas nos Estados Unidos se tornou sujeita a mudanças”.
Davis não foi a única autora a abordar o autocuidado de forma direta em seus discursos. A poeta Audre Lorde escreveu que “cuidar de mim mesma não é autoindulgência, é autopreservação, e isso é um ato político”. A ideia é que garantir a própria sobrevivência e bem-estar quando se pertence a um grupo minorizado –negros, mulheres, LGBTs– é uma forma de enfrentamento das estruturas consideradas opressoras.
Em um cenário de altos índices de depressão, ansiedade e doenças crônicas, não espanta que a ideia, mesmo distante de suas raízes na política radical, encontre tração, principalmente no mercado.