Em outubro de 2019, a Amazon processou o Pentágono, alegando que o presidente Donald Trump havia a havia impedido a empresa de garantir um contrato de computação em nuvem de US$ 10 bilhões devido à sua hostilidade em relação ao jornal The Washington Post e seu proprietário Jeff Bezos —a quem o presidente dos EUA ridicularizou como “Jeff Bozo”.
Na época, a disputa era apenas um exemplo das constantes contendas entre a Casa Branca de Trump e o setor corporativo americano. Mas o episódio deixou uma marca duradoura em Bezos, fundador da Amazon e a segunda pessoa mais rica do mundo.
No último ano, Bezos promoveu uma reviravolta pública significativa em sua relação com Trump —a quem anteriormente criticou como uma “ameaça à democracia”— que surpreendeu até mesmo associados de longa data e chocou a redação do Washington Post.
No dia da posse, Bezos ficou ao lado de outros bilionários da tecnologia enquanto Trump prestava juramento. A cerimônia, que contou com doação de US$ 1 milhão da Amazon, foi transmitida ao vivo no Prime Video, plataforma de streaming do gigante do varejo.
O Prime também pagou US$ 40 milhões por um documentário sobre Melania Trump —quase triplicando a oferta do estúdio rival Disney, embora a oferta da Amazon fosse para uma minissérie.
Cerca de US$ 28 milhões desse valor irão diretamente para o bolso da primeira-dama, segundo interlocutores.
Recentemente, a Amazon pagou para exibir episódios antigos de “O Aprendiz”, reality show que Trump apresentou de 2004 a 2017, no Prime Video —outra maneira de enviar tanto dinheiro quanto elogios ao presidente.
No Washington Post, Bezos cancelou um apoio do conselho editorial à então candidata democrata Kamala Harris e ordenou que a seção de opinião do Post publicasse artigos sobre “liberdades individuais e o livre mercado”, comprometendo-se a nunca publicar opiniões contrárias a esses princípios.
O império de Bezos inclui uma participação na maior plataforma de comércio eletrônico e provedora de computação em nuvem do mundo, a Amazon, além da propriedade da fabricante de foguetes Blue Origin e de um dos jornais mais influentes dos Estados Unidos.
Joias da coroa de Bezos
Amazon.com
Bezos fundou o ecommerce em 1994 na garagem de sua casa na região de Seattle. O site cresceu e tornou-se a maior plataforma do mundo nesse segmento, e o empresário mantém uma grande fatia na empresa, que está avaliada em US$ 2 trilhões. Embora o negócio de varejo continue a ser lucrativo, a rede foi duramente atingida pela pandemia e passou por uma série de cortes significativos de empregos em 2022 e 2023
Amazon Web Services
O principal provedor de computação em nuvem opera centros de dados e oferece ferramentas de software aos clientes. Os cortes de custos mais amplos da Amazon permitiram enormes investimentos na capacidade dos centros de dados —a empresa prometeu gastar cerca de US$ 100 bilhões em 2025. A companhia compete com rivais como Google e Microsoft para liderar o boom da IA e impulsionar este motor de lucro em rápido crescimento
Blue Origin
Bezos é o fundador e único acionista da empresa espacial. Considerado seu projeto de paixão, o fabricante de foguetes visa avançar nas viagens espaciais e compete com a SpaceX de Elon Musk por contratos do governo dos EUA. Em 2023, garantiu um acordo de US$ 3,4 bilhões com a Nasa para enviar humanos à Lua em 2029. No mês passado, demitiu cerca de 10% de sua força de trabalho
The Washington Post
Bezos comprou a empresa de mídia em 2013 por US$ 250 milhões. Sua chegada proporcionou um impulso inicial com o aumento do público, graças à cobertura aprofundada do primeiro mandato de Trump. No entanto, o grupo não conseguiu sustentar esse renascimento, com seu público encolhendo e as perdas aumentando
De acordo com seis interlocutores que trabalharam com ele na Amazon, na Blue Origin e no Washington Post, as decisões fazem parte de uma mudança marcante na estratégia de Bezos em relação a Trump. Essas pessoas descreveram um capitalista astuto, fazendo cálculos práticos para proteger seus negócios.
Mas eles também acreditam que Bezos está operando sob temor em relação a Trump, bem como ressentimento pelo que chama de “vilanização” dos gigantes da tecnologia promovida pelos democratas durante o governo Joe Biden.
Várias dessas pessoas apontaram a perda do contrato de US$ 10 bilhões para o projeto Joint Enterprise Defense Infrastructure (Jedi) pela Amazon —o golpe decisivo da batalha de Bezos contra Trump durante seu primeiro mandato— como um momento decisivo.
“Havia uma piada na época de que a compra do Post não custou US$ 250 milhões. Custou US$ 10 bilhões”, conta o ex-editor do jornal Marty Baron ao Financial Times.
Um interlocutor que encontrou Bezos dias após a decisão do Pentágono diz que ele estava profundamente magoado com o ocorrido.
Para Bezos, há enormes riscos financeiros com Trump 2.0. Seus interesses comerciais são vulneráveis aos debates sobre impostos e tarifas em Washington, e ele detém dezenas de bilhões de dólares em contratos públicos que abrangem segurança nacional e programas espaciais. Os negócios também estão sujeitos a supervisão significativa e pressão de reguladores.
Talvez o mais importante para Bezos seja o futuro da Blue Origin, seu projeto de estimação que visa tornar a viagem espacial acessível, enquanto a empresa disputa contratos do governo dos EUA —muitas vezes em competição com a SpaceX de Elon Musk.
A Blue Origin está ganhando tração, lançando com sucesso um foguete pesado em órbita em janeiro e ganhando um contrato para ajudar a enviar humanos à Lua em 2029. Mas Bezos ainda está atrás de Musk —cuja empresa SpaceX já realizou 450 lançamentos orbitais—, e a proximidade de seu rival com Trump apresenta outro perigo, considerando o relacionamento frio entre os dois bilionáriosd da tecnologia.
Algumas semanas após a eleição de novembro, Musk postou no X que Bezos estava “dizendo a todos que [Trump] perderia com certeza, então eles deveriam vender todas as suas ações da Tesla e da SpaceX”, forçando Bezos a responder “100% falso”.
Um conselheiro de longa data afirma que se o homem mais rico e o político mais poderoso do mundo se unirem contra Bezos, seus planos para a Blue Origin podem ser destruídos.
Pessoas próximas a Bezos contestam a ideia de que ele está tentando agradar ao governo Trump para proteger seus interesses comerciais.
Nas duas primeiras décadas de vida da Amazon, Bezos destacou-se por estar amplamente desvinculado da política, mesmo quando a empresa tornou-se uma das maiores do país —e transformou áreas inteiras da economia no processo.
Segundo o conselheiro, a mudança estratégica do bilionário é movida por medo e oportunismo após uma frustração com a demonização praticada pelos democratas contra a tecnologia.
Bezos há muito tempo é simpático a visões políticas libertárias, segundo pessoas próximas a ele, resultado de ter passado muito tempo quando criança com seu avô no Texas. Mas um interlocutor próximo a ele rebate a ideia de que o empresário realmente está pendendo para a política de Trump.
Baron vê a mudança de postura principalmente como uma questão de negócios. “Devo acreditar que a empresa que é a fonte de sua riqueza, e [aquela que] é o foco de sua paixão, são totalmente irrelevantes para ele em tudo isso? Sinceramente, não sou tão ingênuo”, diz ele, que conduziu o Post como editor de 2012 a 2021, durante o primeiro governo Trump e a aquisição por Bezos.
Agora com 61 anos, Bezos também mudou fisicamente, observam Baron e outros, tendo ganhado a forma física de um fisiculturista. Sua vida pessoal também se transformou quando ele virou alvo de tabloides em 2019, divorciando-se de sua esposa depois de 25 anos após um caso amoroso ter sido exposto na imprensa.
Ele deve se casar novamente neste ano com a ex-âncora de televisão Lauren Sanchez.
A mudança drástica de Bezos em direção a Trump pode ser movida pelos interesses das empresas que ele fundou. No entanto, alarmou a equipe editorial do Washington Post, causando um êxodo de talentos e, supostamente, de centenas de milhares de assinantes do jornal que revelou o escândalo Watergate na década de 1970.
David Maraniss, um editor vencedor do Pulitzer que trabalhou no Post por 50 anos, recentemente prometeu “nunca” escrever para o jornal enquanto Bezos for o proprietário. Maraniss disse ao FT que o clima no jornal é “sombrio, ansioso, incerto, irritado, desolado”.
“Estou quase achando que gostaria que eles pudessem mudar o nome do jornal, porque não é mais o The Washington Post”, disse.
Trump, por sua vez, aprova a condução. “Eu o conheci, e acho que ele está tentando fazer um trabalho real com o The Washington Post. Isso não estava acontecendo antes”, disse o presidente americano em uma entrevista na televisão no domingo (16).
À medida que o império empresarial de Bezos cresceu, seus vínculos com o governo também se fortaleceram.
A Amazon e a Blue Origin detêm mais de US$ 20 bilhões em contratos federais em aberto, incluindo a missão lunar e um contrato de US$ 10 bilhões entre a NSA (Agência de Segurança Nacional) e sua divisão de nuvem, Amazon Web Services.
Após a decisão do contrato Jedi em 2019, a Amazon entrou com uma ação judicial alegando que a concessão do contrato à Microsoft ocorreu devido a “pressão indevida” de Trump.
A cobertura do Post havia colocado Bezos na “mira” de Trump, alegava a ação, citando um artigo que afirmava que o presidente havia discutido maneiras de “ferrar com ele [Bezos]”.
Embora o governo tenha reaberto as licitações, cancelou o projeto sob Biden. Um subsequente contrato de nuvem multibilionário foi dividido entre Amazon, Microsoft, Google e Oracle.
Bezos e seus colegas de big techs também estão buscando um alívio na repressão regulatória da era Biden liderada por Lina Khan, ex-presidente da FTC (Comissão Federal de Comércio).
Em 2017, enquanto estudava na Faculdade de Direito de Yale, Khan escreveu um artigo intitulado “O Paradoxo Antitruste da Amazon”, criticando a “precificação predatória” da companhia e pedindo a divisão do gigante do comércio eletrônico.
Seis anos depois, como chefe da FTC, ela processou a empresa por operar um monopólio que busca “inflacionar preços, degradar a qualidade e sufocar a inovação”. O caso histórico está agendado para julgamento em outubro de 2026.
“O que Bezos e outros titãs da tecnologia têm em jogo é a FTC, e se o [novo] governo está indo atrás deles por serem monopólios”, diz Todd Harrison, um pesquisador sênior do think-tank American Enterprise Institute. “A deferência a Trump está relacionada à prevenção a ações legais diretas.”
Bezos teme que o governo possa tentar fazer da Amazon um exemplo, em vez de seus rivais tecnológicos como Google e Microsoft, de acordo com interlocutores. No entanto, o substituto de Khan como presidente da FTC, Andrew Ferguson, até agora não mostrou sinais de que tirará as big techs da mira.
Mesmo durante os períodos em que esteve em conflito com Trump, Bezos foi cuidadoso em encontrar o presidente sempre que solicitado e disse ter encontrado qualidades redentoras no republicano.
Em uma entrevista de dezembro, após a vitória de Trump, Bezos o descreveu como um homem mudado: “mais calmo do que foi da primeira vez —mais confiante, mais estável”.
Bezos também foi cuidadoso em cultivar laços sociais e financeiros com a família Trump.
Em janeiro de 2020, ele organizou uma festa pós-posse do exclusivo Alfalfa Club em sua mansão no bairro de Kalorama, em Washington, convidando Jared Kushner e Ivanka Trump, bem como a conselheira de Trump Kellyanne Conway. Ivanka Trump e Kushner também participaram da festa de fim de ano de Bezos em um restaurante de sushi no final do ano passado.
Uma pessoa próxima a Bezos admite que o acordo para o documentário de Melania Trump é ridículo, mas muito pragmático.
A Amazon diz que assinou o acordo para o documentário de Melania Trump “por uma razão e apenas uma: porque achamos que os clientes vão adorar”.
Dentro da Redação do Washington Post, a transformação política de Bezos tem sido nada menos que traumática.
Bezos adquiriu o Post em 2013 por US$ 250 milhões após ser abordado pelos Grahams, uma família rica que controlou o jornal por oito décadas. Na época, o Post estava em uma espiral comercial descendente, tendo sido duramente atingido pela disrupção do setor pela internet.
Sob a propriedade de Bezos, o jornal inicialmente desfrutou de um renascimento. O Post conquistou milhões de assinantes, como Bezos havia previsto, ao cobrir a ascensão de Donald Trump e sua presidência.
Diante de ataques pessoais de Trump, Bezos apoiou o jornal e dobrou sua equipe de cobertura política. Ele esteve intimamente envolvido em uma reformulação do Post durante os anos Trump, até mesmo escolhendo o novo slogan de marketing do jornal em 2016: “Democracy Dies in Darkness” [“A Democracia Morre na Escuridão”].
Mas o Post tem lutado para manter o sucesso comercial que alcançou durante o primeiro governo Trump, ficando muito atrás de seu maior concorrente, o New York Times. Seu público encolheu e as perdas financeiras aumentaram.
Essa luta comercial ocorreu ao mesmo tempo em que Bezos se aproximou de Trump e começou a intervir na editoria de Opinião, piorando ainda mais o humor em todo o jornal. Pelo menos 12 jornalistas experientes deixaram o veículo para trabalhar para concorrentes.
Muitos viram uma ligação direta entre sua contenção no jornal e as recompensas para suas outras empresas. Horas depois de Bezos ter retirado o apoio do jornal a Harris, o CEO da Blue Origin, David Limp, encontrou Trump em um comício no Texas. O ex-editor geral do Post, Robert Kagan, disse que o encontro foi uma troca de favores.
No último tumulto, a veterana jornalista Ruth Marcus se demitiu na semana passada, alegando que o CEO Will Lewis havia cortado uma coluna que ela havia escrito criticando a reformulação da editoria de Opinião por Bezos.
“O Washington Post em que eu entrei, o que eu passei a amar, não é o Washington Post que eu deixei”, disse Marcus sobre a decisão.
No entanto, apesar de todo o drama na Redação, das queixas públicas apresentadas por jornalistas veteranos e da cobertura incessante da mídia retratando o Post em crise, há pouca indicação de que Bezos esteja abalado.
Em janeiro, mais de 400 jornalistas do Post assinaram uma carta pedindo que Bezos se encontrasse com eles para discutir suas preocupações. Ele não respondeu.
“Ele levou a organização em uma certa direção e parece determinado a fazer isso, por uma razão que ele não explicou completamente”, diz Baron, que acrescenta que não tentou contatar Bezos sobre suas objeções.
“Simplesmente não acho que ele se importe com o que eu penso.”