Os cautelosos, pretensiosamente educados, dirão que é responsabilidade afetiva. Mas, cá entre nós, muitas vezes essa frase soa mais como uma nova carta do “Super Trunfo relacional” —uma espécie de carta de isenção de responsabilidade. Não é que não se queira alguém. É que não se quer conflito. Não se quer ser demandado. Não se quer lidar com as frustrações do outro. Nem com as próprias.
A frase, dita em jantares descolados e conversas profundas, ganha tom sagrado, como se o outro tivesse que assinar um contrato: “Declaro que estou ciente da isenção de responsabilidade emocional da pessoa à minha frente. Não cobrarei carinho, não criarei expectativas, não me frustrarei se você sumir”. Curiosamente, o mesmo sujeito que “não quer se envolver” viaja junto, apresenta à família, compra rejunte no C&C… Mas, se for cobrado, saca a carta: “Eu avisei”.
Há uma dimensão de gênero nisso tudo. Entre os homens, essa “transparência emocional” virou armadura contra o cancelamento. Um machismo polido, disfarçado de maturidade, que presume que a mulher, obviamente, quer namoro, envolvimento profundo, um oceano de certezas que lhes causam náusea só de vislumbrar. Nem lhes passa pela cabeça que estamos apenas curiosas, dispostas (o que não é sinônimo de disponíveis), interessadas em mais um jantar gostoso —não necessariamente no amor da vida.
O fato é que quando o assunto “não quero relação” já surge nos primeiros encontros, parece haver uma cobrança para que você também se posicione. Será mesmo que precisamos falar sobre isso tão cedo? Ou há alguma sabedoria em sustentar nossa versão Glória Pires e ainda não ser capaz de opinar?
Aparentemente, a “clarificação precoce” não atinge só quem foge de compromisso. Segundo o relatório global do Happn 2024, 89% dos solteiros brasileiros querem um compromisso recíproco e desejam alinhar expectativas e intenções o quanto antes. Ou seja: nove em cada dez brasileiros querem a promessa do amor sem o risco da frustração. Por que será que estamos tão infelizes no amor?
Tanto quem antecipa o “não estou pronto para uma relação” quanto quem espera que o outro saiba exatamente o que quer desde o início —e, pior, se ilude achando que sabe exatamente o que deseja— impossibilita o encontro amoroso ao negar algo essencial ao apaixonamento: o mistério que nos move em direção a pessoa amada.
Penso em “A Sociedade da Transparência”, de Byung-Chul Han. Ele diz que nossa época exige que tudo seja visível, explicável e transparente e, com isso, sufoca o que é ambíguo, turvo, misterioso: o terreno fértil do desejo, da paixão, do vínculo. “A transparência não permite o jogo. Elimina o segredo, a sedução, o erotismo, o enigma. Ela é o fim do outro.” O amor pressupõe o outro como esse enigma —mas hoje tentamos traduzi-lo e traduzirmo-nos antes mesmo de nos encantarmos por ele. O discurso da transparência afetiva virou uma defesa moderna contra o desejo. Já não se trata de amar, mas de gerenciar expectativas, evitar riscos, seguir performando autonomia mesmo diante da vontade de ceder.
Percebo que, na afirmação “não estou pronto para uma relação”, o que mais se evita não é amar —é o incômodo. O atrito. O tempo de indefinição. Somos uma geração treinada a operar no “ou vai ou racha”, nas respostas instantâneas do Google e do ChatGPT. Já não sabemos suportar o tempo do não saber. A angústia. A suspensão. A convivência que vai ganhando corpo. O desejo que não se explica e não sabe para onde vai. A dúvida que não se resolve no tempo de um stories. Por medo da dor ou do apego, antecipamos cláusulas e limites, como se o afeto fosse contrato e não travessia.
No fundo, poucos estão 100% fechados. Só não querem correr os muitos riscos: de não serem correspondidos, de perderem o controle, de amarem demais, de não conseguirem se entregar, de terem a rotina alterada, de machucarem alguém… Muitos começam relações respondendo aos medos do ex, às dores do casamento anterior, aos ecos dos dramas familiares, tentando não repetir histórias ainda mal digeridas. E talvez esteja aí o verdadeiro problema: não é que a gente não queira amar. É que a gente não quer mais sentir tanto. Porque das últimas vezes doeu demais. Confundimos intimidade com ameaça.
A pressa por esclarecer tudo logo no primeiro encontro —o que se quer, o que não se quer, o que está fora de cogitação —parece autoconsciência, mas muitas vezes é só medo disfarçado. Medo de errar, de frustrar, de se frustrar. Medo de sentir demais. Só que amor mesmo —o que pulsa, o que nos move, o que nos salva— nunca nasceu da certeza. Ele sempre foi fruto da confusão.
E se você também tem um dilema ou uma dúvida sobre suas relações afetivas, me escreva no [email protected]. Toda quarta-feira respondo a uma pergunta aqui.
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