Eu fechei a fábrica depois do segundo filho. Fechei sem pensar duas vezes, sem elaborar os motivos, sem fazer conta de matemática, sem pesar os prós e os contras, tão obviamente correta era a decisão. Dois está bom, me dizia o meu corpo exausto e a minha conta bancária vazia.
Aliás, teve gente do meu círculo de amigos que achou loucura ter mais de um. Ter um filho só já é caro demais e cansativo demais para querer elevar o trabalho ao quadrado.
Mas, dia desses, tive um lapso momentâneo. Foi um desses dias raros, quase mitológicos, em que tudo sai absolutamente conforme o script. O sol brilhava no céu e as crianças colaboraram com tudo o que nos propusemos a fazer. Não brigaram entre si, não deram nenhum escândalo, comeram a comida que lhes foi apresentada, dormiram sem pestanejar ao apagar das luzes. E diante de tamanho milagre, meu coração —enquanto o cérebro estava entorpecido de estupefação— ousou pensar o impensável:
“E se a gente tivesse mais um?”
Me permiti sonhar por alguns segundos, a barriga grande novamente, a emoção de colocar uma nova vida no mundo, o coração derretido ao ver os irmãos conhecendo o novo membro da família pela primeira vez.
Imaginei a mesa cheia nas refeições, a casa cheia no Natal, o quintal cheio no verão, o colo cheio daquele amontoado de amor. E aí passou. Ao som de um estalo imaginário, voltei a mim. O sonho se dissipou como névoa e deu lugar à realidade: os boletos da creche, a sobrecarga, o tempo —já pouco— dividido por três, o peso no corpo, na vida social, no casamento. E tudo isso num mundo cada vez mais difícil, com crise climática, guerras, pandemias, desigualdade e mais todo um menu variado de tristezas e catástrofes.
“Dois já está bom”, repeti para mim mesma.
Dias depois, passeando pela grande rede de computadores, me deparei com uma notícia que parecia mais uma provocação diante da minha momentânea ousadia.
“Saiba quem são os 14 filhos do bilionário Elon Musk.”
Sim, enquanto eu não vejo alternativa factível que não fechar a minha própria fábrica, enquanto gente como eu pensa 20 vezes antes de ter um filho que seja, enquanto meio mundo teme não ser capaz de dar aos poucos filhos uma vida longe de balas perdidas, enchentes, bombardeios e afins, o senhor Elon Musk, aquele mesmo que foi visto fazendo saudações nazistas e dancinhas constrangedoras na posse de seus amigos cor de laranja, está reproduzindo a todo vapor.
E ele não está sozinho. Uma parcela ruidosa dessa “elite” global – majoritariamente branca e ultraconservadora – parece ter assumido como missão pessoal repovoar o planeta. São homens que negam as mudanças climáticas, combatem os direitos das mulheres e das minorias, apoiam líderes autoritários, e veem na multiplicação de seus genes a possibilidade de multiplicar também suas ideias.
A verdade é que reproduzir deliberadamente sem pesar as consequências virou privilégio, coisa para quem pode ou para quem não tem juízo, e infelizmente gente como o senhor Musk dá check em ambas as caixinhas.
E enquanto Musk se apresenta como o Noé dos tempos modernos, mais e mais homens e mulheres que admiro e que gostaria de ver mais exemplares povoando o planeta, estão escolhendo muito conscientemente não reproduzir ou, pelo menos, não reproduzir mais. Não necessariamente porque não querem procriar, mas porque são conscientes demais para ignorar o preço de colocar alguém neste mundo.
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