O aumento das transferências de recursos para estados e municípios, inclusive por meio de emendas parlamentares, impulsionou as despesas desses entes a um patamar acima dos gastos diretos da União, em um novo arranjo federativo que impõe desafios econômicos, fiscais e políticos.
Com os cofres mais cheios, governadores e prefeitos pisaram no acelerador nos últimos anos e expandiram investimentos e gastos com pessoal, colhendo os dividendos eleitorais derivados dessas políticas. A maior concentração de despesas também ampliou seu poder de influência no xadrez político nacional, na visão de especialistas.
A outra face dessa nova realidade é a deterioração das contas, mais evidente até agora nos municípios, e a imposição de um obstáculo adicional à tarefa do Banco Central de controlar a inflação. Enquanto o BC fala da importância do ajuste fiscal, normalmente interpretada como um recado à União, estados e municípios seguem firmes no estímulo à demanda, despejando recursos em suas respectivas localidades.
“Hoje os governos regionais impactam muito mais a economia do que a União. Isso aumenta o que a gente chama de taxa de sacrifício, que é o aumento necessário da Selic para poder trazer a inflação de volta para a meta. Essa dinâmica vai sobrecarregar tanto a política monetária quanto a política fiscal executada pela União”, afirma o economista Bráulio Borges, economista-sênior da LCA 4intelligence, pesquisador associado do FGV Ibre e colunista da Folha.
Ele alerta que a necessidade de juros maiores aumenta os custos do Tesouro Nacional para rolar sua dívida, o que eleva a incerteza dos investidores quanto à sustentabilidade das contas brasileiras. “Esse tipo de descoordenação entre as políticas aumenta a chance de uma freada brusca na economia, que pode gerar muitas sequelas.”
O novo cenário das finanças regionais e suas consequências para o país serão discutidos na série de reportagens Desafio fiscal de estados e municípios, publicada a partir desta segunda-feira (7).
Em estudo feito a partir de dados do Tesouro, Borges aponta que a correlação que existia entre as despesas da União e dos governos regionais foi quebrada a partir do fim de 2021, quando começou a mais recente rodada de descentralização de recursos para estados e municípios.
Desde o fim da década de 1990, o Congresso Nacional patrocinou diversos aumentos nas transferências, com maior repartição de impostos federais e a criação do Fundeb (fundo para a educação básica), por exemplo.
Nos últimos anos, além de reeditar alguns desses expedientes para ampliar repasses e turbinar o Fundeb, o Legislativo lançou mão de novos instrumentos para injetar recursos diretamente no caixa de estados e municípios, sem qualquer carimbo, por meio das chamadas “emendas Pix”. Como resultado, as transferências encostaram em R$ 600 bilhões no ano passado, 43,2% a mais do que em 2019, já descontado o efeito da inflação no período.
Forrados de novas receitas, estados e municípios se descolaram da União. Sua média trimestral de despesas chegou a R$ 645 bilhões em 2024, um crescimento real de 26% em relação a 2019. Já o gasto direto da União, que desconsidera justamente o que é transferido para os governos regionais, ficou em R$ 508 bilhões na média trimestral, alta de 5% na mesma base de comparação.
“Quanto mais o município ou o estado recebe transferências, mais ele tende a gastar, porque não tem essa noção de que tem custo, [de que precisa] tirar imposto da população. Não tem um custo político ou social”, afirma a pesquisadora Débora Costa Ferreira, que, em sua tese de doutorado na UnB (Universidade de Brasília), analisou a evolução dos incentivos eleitorais a partir das regras fiscais brasileiras.
Ela chama a atenção para outro efeito perverso do aumento das transferências: a melhora fictícia de indicadores de saúde fiscal medidos como proporção da receita corrente líquida (RCL). Como esse conceito inclui diversos repasses, o endividamento e os gastos com pessoal ficam menores em relação à RCL, transmitindo uma aparente responsabilidade fiscal.
Na arena política, a descentralização de recursos para estados e municípios, patrocinada pelo Congresso, reduz sua dependência em relação ao Executivo federal e fragiliza o poder político do presidente da República, avalia Bruno Carazza, professor associado da Fundação Dom Cabral.
“Antigamente, o presidente controlava a maior parte da aplicação dos recursos, e agora está perdendo protagonismo, tanto para os parlamentares quanto para governadores e prefeitos. Fica muito mais difícil para o presidente extrair o máximo de resultado político dessa execução orçamentária”, diz.
Segundo ele, isso pode afetar não só as chances de reeleição, mas também a capacidade de conquistar uma grande bancada aliada no Parlamento ou ampliar a representação política de seu grupo nos estados e municípios.
Eventual reversão do atual quadro não é simples e também pode gerar desequilíbrios. A principal preocupação dos especialistas é, justamente, se os recursos que hoje financiam a bonança refluírem, seja por mudanças nos acordos políticos, seja por uma desaceleração mais brusca da economia.
Nos últimos anos, boa parte da expansão fiscal dos subnacionais foi puxada por investimentos. Isso pode trazer bons frutos no médio e longo prazo (apesar das dúvidas quanto à qualidade dos projetos), mas, sobretudo, dá mais flexibilidade aos gestores diante de eventual necessidade de cortes de gastos.
No entanto, a despesa com pessoal também subiu, principalmente nas prefeituras, o que pode ser um complicador em uma situação de crise. Além de terem maior peso nos orçamentos, elas são perenes e não podem ser facilmente reduzidas.
O economista Ítalo Franca, do Santander, afirma que estados e municípios ainda têm recursos em caixa para administrar alguma perda de receitas decorrente da desaceleração da atividade. Mesmo assim, ele prevê necessidade de ajustes, sobretudo nas prefeituras, que terminaram 2024 com um déficit de R$ 23 bilhões.
Estudo da CNM (Confederação Nacional dos Municípios) mostra que 54% das prefeituras fecharam o ano passado com as contas no vermelho. O percentual era de 36% em 2022.
“Essa crise é estrutural, não conjuntural, e tende a ir se aprofundando”, afirma o presidente da entidade, Paulo Ziulkoski. Segundo ele, embora as transferências tenham crescido, boa parte delas vêm também com obrigações.
A Folha procurou as 27 unidades da federação, das quais 15 responderam. Em geral, os estados veem as transferências como uma fonte para financiar políticas públicas e investimentos.
Já o Ministério da Fazenda afirma que a descentralização é um movimento estrutural que ocorre há décadas e reflete o incremento na capacidade desses entes de executar políticas.
“A expansão dos gastos dos entes subnacionais só passa a ser um problema se decorrer de expansão sem lastro em recursos para suportá-la”, diz a pasta.
A recente aprovação de uma nova renegociação de dívidas dos estados (que abre mais espaço para gastos) e o vislumbre de um novo período eleitoral à frente despertam preocupações adicionais para o futuro.
“Ninguém vai querer fazer ajuste agora. As pessoas vão dar uma de Orestes Quércia [ex-governador de São Paulo], ‘quebrei o estado, mas elegi meu sucessor'”, diz Borges.