Se você não está feliz, a família é perfeita para quem? Para os posts, para os almoços na casa da sua avó, repletos de primos com casamentos visivelmente em crise, ou para o grupo de WhatsApp dos pais da escola, que admiram a sintonia entre você e seu marido na criação dos filhos e no carinho um com o outro?
Essa primeira camada, moldada pelas expectativas alheias, até poderia ser fácil de desconstruir. O desafio maior é admitir que essa talvez seja a família perfeita para o seu próprio ideal —aquele que você projetava desde criança e que hoje vê suas crianças desenhando no sulfite numa tarde tranquila de domingo. Um desenho que quase funciona como um atestado da sua vitória como mulher: no jogo da vida, você conseguiu levar seu carrinho até a casa da família estruturada —pais ainda cúmplices, ainda transando, ainda compartilhando responsabilidades e dicas de filmes do Mubi. E, no banco de trás, um casal de filhos bem-educados, carinhosos, criativos e que (milagre!) quase não recorrem às telas.
Mas se a aparente vitória nos diz sobre cumprir o ideal de eu e o eu ideal, a angústia nos lembra que nossos desejos não são lineares como as casas de um tabuleiro.
Por que sua infelicidade não pode ser uma justificativa relevante o suficiente para o fim de um casamento? O arrebatador e aterrorizante do amor é que ele nos escapa. É um sentir sem contorno, sem chão. No início, é vertigem; no fim, ausência —de sentir e de sentidos. Se somos incentivadas a acreditar na potência irracional do amor quando ele surge, por que abafamos a voz que nos diz que há algo errado quando nos tornamos ausentes de nós mesmas?
Infelizmente, essa autorização do desejo de ser feliz em outra configuração é muito mais difícil para nós, mulheres. Historicamente, fomos ensinadas que amor é cuidado e renúncia: é passar por cima dos próprios desejos, limites e ambições em nome do bem-estar daqueles que amamos. A mulher é aquela que, ainda menina, ganha a boneca como primeiro brinquedo para aprender a cuidar. Cresce vendo a mãe cuidando da casa, dos pais idosos, da depressão do marido. Escuta a avó contar, orgulhosa, que abriu mão dos próprios planos para se dedicar aos filhos
Amar, para muitas mulheres, foi um exercício de aprender a ser coadjuvante. Em inglês, se diz “supporting role” —papel de suporte, na tradução literal. Pois bem. Quanto mais pudermos ser os alicerces para o protagonismo dos que amamos, mais ficaremos felizes com a felicidade da família. Quanto à nossa? Melhor não mexer nisso e sublimar o próprio incômodo. Aprendemos também que amar era conter — conter a raiva para manter a harmonia, conter a voz para preservar o outro. E, de alguma forma, também entendemos que nos cabia conter o núcleo familiar. E assim a esmagadora maioria das mulheres ainda se culpa pelo desejo de se separar, como se estivesse destruindo a família ao desconstruir o casamento. Como se essa escolha individual fosse gerar consequências fatais nas emoções das crianças.
O perverso é que muitos maridos manipulam essa culpa feminina para silenciar o desejo de autonomia. “Você é egoísta”, “como pode abandonar sua família?” são frases usadas para sufocar um desejo legítimo em nome de um suposto bem-estar coletivo. Mas que bem-estar é esse quando uma das partes se sacrifica?
Deslegitimar a própria infelicidade e aguardar o surgimento de um motivo concreto para justificar o divórcio é uma tentativa de dar contorno a uma fase inevitavelmente angustiante. O incidente incitante nos dá a ilusão de que a quebra da relação aconteceu por “justa causa” e nos tira do suposto papel de vilãs da história. Mas quanto mais a mulher adia a decisão, buscando justificativas incontestáveis para sair, mais fragilizada e infeliz ela se torna. A impotência cresce na mesma medida que sua vitalidade se esvai, tornando-a refém de uma vida de amor terceirizado. Não querendo ser vilã dos outros, tornou-se sua própria carrasca. Mas será mesmo que os finais precisam sempre de vilões?
Pensar na própria felicidade não é rejeitar a família nem ameaçar o desenvolvimento infantil. Pelo contrário, é ensinar, pelo exemplo, a possibilidade de reinvenção. Mostrar às crianças que amor não precisa ser sinônimo de sacrifício, mas de integridade e respeito aos próprios limites. Normalizar as separações é incentivá-las a buscar caminhos para serem mais felizes quando sentirem necessidade. O casamento se desfez, mas a família, não. O amor se reconfigura, caleidoscópico.
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