“A única certeza do futuro é que estaremos errados em qualquer previsão. Se alguém, em 2019, falasse sobre o efeito das bets no varejo ou sobre a pandemia, ninguém estaria pronto.”
A frase de Belmiro Gomes, presidente da rede de atacarejos Assaí, ilustra bem o desafio das empresas de varejo no país: em meio às incertezas econômicas e políticas, a fenômenos sociais, climáticos ou de saúde pública, é preciso garantir o abastecimento de itens básicos à população: alimentação, medicamentos, roupas. Talvez nenhum outro setor da economia fale tão de perto com o cidadão quanto o varejo.
A Folha dá início nesta segunda (24) à série “Lideranças do Varejo”, com entrevistas em vídeo e texto com os presidentes de algumas das maiores redes e marketplaces do país. A série vai trazer um perfil das empresas, dos seus líderes e a história de algumas marcas já incorporadas ao dia a dia da população.
Entre os temas que ocupam o cotidiano dos executivos estão a queda de braço com a indústria por preços, a adaptação às legislações trabalhista, tributária e que regulamentam a logística em diferentes estados e cidades do Brasil, a adoção de evoluções tecnológicas e a procura por melhor margem de lucro. E, acima de tudo, a necessidade de sentir o pulso do consumidor, para acompanhar as mudanças de comportamento que levam a novos hábitos de compras.
“O setor precisa ter resiliência para navegar em cenário de instabilidade e incerteza. Isso sempre foi a tônica no Brasil, mas agora virou um cenário global”, diz Alberto Serrentino, sócio da Varese Retail e um dos principais especialistas em varejo do país. “Realmente não tem muito como se preparar para o que vai acontecer. É preciso musculatura para suportar mudanças.”
Segundo Serrentino, isso significa apresentar uma estrutura de capital saudável e robusta, para não aumentar o endividamento para além do que o caixa operacional é capaz de suportar, mesmo em cenário de juros altos e de crédito escasso. “Disciplina financeira” é a ordem da vez, diz.
Outro ponto essencial é equilibrar as demandas de curto e longo prazo. “As empresas muitas vezes são dispersas, tentam fazer muitas coisas ao mesmo tempo, e oscilam entre agendas de crescimento e inovação e agendas de austeridade e foco quando, na verdade, deveriam equilibrar as duas frentes.”
Estar de olho na execução do dia a dia, do que gera resultado e do que o diferencia da concorrência, ao mesmo tempo em que não descuida do longo prazo —numa estratégia em que o cliente está no centro do negócio e a tecnologia é aliada— são medidas fundamentais.
Para Daniel Sakamoto, gerente-executivo da CNDL (Confederação Nacional dos Dirigentes Lojistas), os maiores desafios estão relacionados às questões macroeconômicas, como a taxa Selic a dois dígitos, a inflação persistente e a inadimplência que bate recordes.
“As altas taxas de juros desincentivam os investimentos. Existem segmentos do varejo cujos resultados estão altamente vinculados à Selic, especialmente aqueles com produtos de maior valor agregado, que dependem de parcelamento, como móveis, eletrodomésticos e veículos”, afirma.
“Isso sem falar que praticamente todas as empresas de varejo dependem de crédito e de antecipação de recebíveis para fazer a gestão de caixa, e o custo do crédito acompanha os movimentos da Selic. Com isso, o custo operacional das empresas aumenta”, diz Sakamoto.
Para Serrentino, a Selic tem um efeito “muito perverso” para o varejo. “Qualquer empresa alavancada [com operações de empréstimos e financiamentos], condição da maioria, tem que financiar essas dívidas. Numa subida de juros, o custo dessa dívida cresce, a despesa financeira aumenta, e isso começa a drenar resultado e caixa. O dinheiro que poderia ir para investimentos e planos de crescimento é usado para pagar o passado.”
Sakamoto ressalta a falta de mão de obra. “Há um desafio geracional no qual os jovens procuram oportunidades mais flexíveis, com menos vínculos e restrições em termos de horário e rotina de trabalho”, diz. “Isso gera alta rotatividade, falta de bons colaboradores para assumir funções gerenciais e comprometimento operacional das empresas.”
Entre as lições de casa que entraram para a pauta do setor está a integração da inteligência artificial às operações. “É uma tecnologia usada para elevar o patamar de produtividade, de eficiência, do acerto nas tomadas de decisão”, diz Serrentino.
Há mudanças de comportamento que precisam estar no horizonte. Um relatório recente do Santander apontou a chegada da loja do TikTok ao Brasil como um marco decisivo para o setor, que pode avançar ou perder espaço a partir do quanto conversa com seus públicos pela plataforma.
“Nunca o desafio de atender diferentes perfis de público ao mesmo tempo foi tão grande”, diz Sakamoto. “Primeiro pela longevidade cada dia maior, em conjunto com a extensão da faixa de consumo ativo: crianças entrando mais cedo no mercado consumidor e idosos permanecendo ativos por mais tempo.”
A perenidade do negócio está vinculada a questões culturais, uma vez que o setor depende de relacionamentos, diz Serrentino. “O propósito, a capacidade de engajar pessoas, de criar uma relação positiva com todos os públicos de interesse e a responsabilidade social corporativa vão permitir que o negócio atravesse gerações.”