De 2010 a 2024, o IPCA da alimentação no domicílio variou 71 pontos percentuais acima da variação acumulada do IPCA Geral. Nesses 15 anos, somente em 4 a inflação da comida ficou abaixo do índice geral.
Não é um fenômeno novo, portanto, mas com chance de escalar e ameaçar a continuidade do êxito do governo Lula (PT) no combate à fome e à pobreza e na recuperação da economia e da renda da população.
Pelas repercussões socioeconômicas e políticas, o governo vem dispensando atenção máxima ao tema.
O problema não é a demanda, mas as limitações na oferta que empurram milhões de brasileiros para o consumo dos alimentos ultraprocessados. Isso impede a “explosão” dos preços, mas traz danos para a saúde pública e sacrifica hábitos alimentares tradicionais e saudáveis.
É intrigante que isso ocorra num país com inflação controlada, terceiro maior produtor de alimentos, com potencial para colher os grãos mais importantes durante todo o ano, com capacidade financeira de fomento à atividade e que é líder mundial na produção e exportação de várias commodities alimentares.
Ao longo do tempo tem sido conveniente justificar a volatilidade dos preços dos alimentos pela ação de fatores mais visíveis, como câmbio e clima.
As restrições na oferta se distinguem por grupos. Há alimentos, como o arroz, em rota erosiva de longo prazo, em área e produção, provocada pelo “arrastão” do avanço de produtos nobres do agronegócio exportador.
Há outros, como a carne bovina, com níveis exuberantes de produção, objeto da fúria exportadora do setor, sem trava regulatória na defesa do abastecimento interno (a propósito, o que nos aguarda com o revide tarifário da China a vários alimentos importados dos EUA?).
Esse quadro da oferta é fruto da rigidez das políticas para o setor, definidas em conformidade com interesses do mercado agroexportador particularmente desde a década de 1990.
Os Planos Safra anuais consolidam a estratégia, impermeáveis a mediações substantivas. Até o Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) foi transformado em coadjuvante do processo.
Tal realidade deriva da tolerância ao poder abusivo das frações anacrônicas do agronegócio, com farta representação no Congresso, e que encurralam os governos. A política de estoques públicos foi e continua destruída porque não interessa a esses setores, mesmo em tempo de crise climática.
Blindaram os estoques privados com a revogação, no governo Bolsonaro, da Lei Delegada nº 4/1962. Nesses termos, desarranjos no câmbio, ou frustrações de safras reverberam, sem mitigações, no abastecimento e nos preços.
Nas cheias no Rio Grande do Sul, que produz 70% do arroz nacional, fomos salvos porque a calamidade teve início no final da colheita. Temos uma brutal concentração regional/social, e a inversão de prioridade nos instrumentos da política setorial.
Dos recursos aplicados pelo Pronaf para arroz e feijão, mais de 97% ficam no sul, assim abortando as respostas produtivas da ampla diversidade de calendários agrícolas do país durante todo o ano. Na safra 2023/24 o Pronaf financiou com recursos dos Fundos Regionais apenas 14 contratos de arroz e 2 de feijão no conjunto das regiões norte, nordeste e centro-oeste.
É possível e desejável viabilizarmos, ainda neste ano, grande volume de alimentos essenciais mediante medidas emergenciais.
Basta mobilizar a agricultura familiar excluída do Pronaf (70%) por meio de compras públicas a preços estimulantes, via instrumentos como o previsto no art. 7º da Lei nº 14.275, de 2021. E negociar com os setores empresariais acordo pela estabilidade do abastecimento de alimentos com hiperinflação recente.
Não dando certo, contudo, não seria heterodoxia ou heresia defender a economia popular com restrições provisórias às exportações. O contrário seria cair na armadilha política da direita, com ruralistas e parte do mercado estendendo o Carnaval com ganhos econômicos e políticos.
Aguardar o Plano Safra e apostar as fichas na supersafra de (dois) grãos, soja e milho, também não seria recomendável. Quedas episódicas nos preços têm passado a ilusão de retorno da estabilidade —2026 está logo ali.