Francisco Assis, 42, indígena da etnia pankararu, não teve uma rotina tradicional de concurseiro, com horas de estudo por dia. Dividido entre o trabalho, o cuidado com o filho pequeno e a liderança na aldeia, ele diz que a própria trajetória de vida o ajudou a se preparar para o CNU (Concurso Público Nacional Unificado), no qual foi aprovado para o cargo de engenheiro agrônomo na Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas).
Já convocado para o curso de formação, Francisco quer levar avanços à sua terra de origem, em Petrolândia, no interior de Pernambuco. Ainda que os pankararus tenham território demarcado há quase 40 anos, as aldeias mais à margem do rio São Francisco ficaram de fora –algo que o povo indígena tenta reverter há pelo menos duas décadas, segundo o engenheiro.
“Entrar na Funai vai muito além da questão salarial. É por ser o órgão que nos assiste e que precisa de reforço humano”, diz. “É importante que a Funai seja reestruturada, porque vai garantir nossa proteção cultural e territorial.”
Além de graduação, ele é técnico em agronomia, tem mestrado na área e está concluindo o doutorado. O engenheiro já atua no setor público há 18 anos, como extensionista rural no Instituto Agronômico de Pernambuco.
Entre suas funções no cargo está a de facilitar o acesso de indígenas da região a políticas públicas, como o cadastro da agricultura familiar, que dá direito a crédito e aposentadoria rural.
Uma das lideranças do território, Francisco pretende se tornar pajé na aldeia, como forma de honrar o legado do pai, que era pajé e morreu em 2018.
Filho de agricultores, o engenheiro nasceu em São Paulo, em um período em que muitos pankararus saíam do interior para tentar oportunidades de emprego na capital paulista. Mas a família enfrentou dificuldades na cidade e, aos quatro anos, Francisco retornou a Petrolândia.
Durante a infância e a adolescência, alternava o dia a dia entre a cidade, onde estudava, e a aldeia, para estar próximo ao restante da família e comparecer a rituais indígenas. Na época, as escolas do território tinham apenas até a primeira etapa do ensino fundamental –hoje, há vagas para alunos até o nono ano.
“Estamos lutando para estadualizar as escolas e ter todas as séries. Agora, já temos um EJA [Educação de Jovens e Adultos], em que um tio meu está estudando, aos 93 anos”, diz. “Enquanto liderança, existe essa preocupação de sempre divulgar vestibulares indígenas. O prejuízo ainda é grande porque foram anos de colonização e tentativa de apagamento, mas queremos abraçar essa causa.”
Depois de formado no ensino médio, Francisco iniciou curso técnico em agronomia. Formado, começou a trabalhar na Souza Cruz, onde ficou por dois anos.
Decidiu sair da empresa quando surgiu a Universidade Federal Rural do Pernambuco em Serra Talhada, município próximo a Petrolândia. Por ser mais perto de casa, possibilitaria que ele ingressasse no ensino superior. Mais tarde, também se formou em gestão ambiental pelo Instituto Federal de Pernambuco.
Quando houve o anúncio do CNU, Francisco já era servidor do Instituto Agronômico do estado, mas sempre quis atuar na Funai e pôs o órgão como primeira opção em sua lista. Com a rotina atribulada, não conseguia ter horas diárias de dedicação ao conteúdo do edital. Só se preparou mais na véspera da prova, quando assistiu a vídeos sobre como seria o certame.
“Eu me culpava. Era a oportunidade de entrar no órgão que eu quero, mas não conseguia parar para estudar. Ficava muitas vezes com a consciência pesada, mas, bom, estudei a vida toda”, diz. “Fiz três especializações, um mestrado, estou no doutorado. Sempre me apliquei em tudo.”
Viajou 150 quilômetros para fazer a prova. Mesmo sem ter tido tempo para estudar, saiu da sala confiante e otimista, segundo ele. No fim, além de Francisco, foram aprovadas no certame sua irmã e sua mulher, da etnia aticum-umã.
Para ocupar o cargo, o engenheiro terá de se afastar da região onde viveu a maior parte da vida e se mudar para Brasília com a família. Ele espera, porém, voltar assim que possível para atuar com o povo pankararu.
“Estou sendo preparado, aprendendo para, no futuro, provavelmente assumir a posição [de pajé]. A maioria dos rituais são nos fins de semana, então conseguimos conciliar”, afirma. “O indígena conhece a Funai, então sabe dos problemas. A gente vai ser incansável. Só quero sair quando terminar a minha trajetória profissional.”
Esta é a segunda reportagem de uma série sobre os aprovados no CNU, uma parceria entre a Folha e o Instituto República.org, voltado à gestão de pessoas no setor público. A série aborda a trajetória pessoal, profissional e a dedicação aos estudos de alguns dos futuros servidores classificados no maior concurso público da história.