Ao acordar na manhã de 1º de janeiro de 2021, Ellidy Pullin se sentiu mais sozinha do que nunca: enquanto todos comemoravam o início do ano novo, repletos de sonhos e esperanças, tudo o que ela amava e mais desejava estava sendo deixado para trás em 2020.
“Ainda dói falar sobre aquele dia”, disse Pullin ao programa de rádio Outlook, da BBC. “Eu sabia que não se pode parar o tempo, nem impedir as pessoas de comemorar, mas o fato de que Chumpy estava sendo deixado para trás em 2020, me deixou com a maior, e mais terrível, sensação de vazio que já senti.”
Apenas seis meses antes, Ellidy havia perdido seu companheiro de quase dez anos, o bicampeão australiano de snowboard Alex Pullin —mais conhecido como Chumpy— em um trágico acidente de mergulho.
E no dia anterior, no que parecia ser um desfecho doloroso para um ano de perdas, o corpo de Ellidy rejeitou um dos três embriões que os médicos haviam conseguido fecundar com o esperma de Alex, que havia sido coletado 36 horas após sua morte inesperada.
Este processo de coleta de esperma post-mortem não é novidade: é um método conhecido desde a década de 1970 e, em geral, recomenda-se que seja realizado dentro de 24 a 36 horas após a morte do paciente para maximizar a viabilidade do esperma.
E, embora as estatísticas mostrem que há uma probabilidade alta de sucesso se a coleta for realizada dentro do prazo indicado —com uma chance máxima de sucesso de 86%— se a coleta for feita dentro de 24 horas após a morte, de acordo com os Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês) dos EUA —, quanto mais tempo passar, menores serão as chances de conseguir uma gravidez, e não há casos registrados de sucesso após 36 horas.
Assim como 2020 havia tirado o que havia de mais importante na sua vida até então, 2021 daria a Ellidy Pullin uma segunda chance de se reconectar com o homem que ela mais amou na vida.
Amor à primeira vista
“Eu estava descendo as escadas, e ele passou por mim dizendo: ‘Oi, tudo bem? Bom te ver’ e, sem mais nem menos, entramos na vida um do outro: não conseguimos parar de conversar, ficamos juntos a noite toda. Algo se acendeu dentro de nós imediatamente.”
Embora Chumpy tivesse que viajar no dia seguinte —por conta da agenda movimentada de um atleta de esporte na neve de um país famoso não pelo frio e por seus picos nevados, mas por suas praias quentes e perfeitas para o surfe—, os dois não pararam de se comunicar a partir daquele momento: escreviam cartas, trocavam telefonemas e, por fim, simplesmente encontraram uma maneira de se conectar.
“Chumpy era tão gentil e profundo, era o melhor ouvinte, conseguia fazer você falar, e podia ser tão vulnerável, sempre se certificando de que você estava bem.”
“Acho que as pessoas que o conheceram além do esporte se apaixonaram completamente por ele e por sua essência.”
Após meses de romance, o casal decidiu morar junto, adotar um cachorro e tentar ter um filho. Mas o processo se tornou complicado.
“Estávamos tentando engravidar há cerca de oito meses, ambos muito conscientes em relação à saúde, e, por fim, acabamos consultando um médico para examinar meus óvulos e meus níveis do HAM (hormônio antimülleriano) —que mede a reserva ovariana—, e descobrimos que meus níveis estavam muito baixos.”
“Então dissemos: ‘Vamos continuar tentando nos próximos meses e, se completar um ano, vamos começar o tratamento de fertilização in vitro’, e esse era o plano…”
O acidente
Apesar de ser um profissional de snowboard, Chumpy cresceu em meio ao oceano.
Sua família havia navegado ao redor do mundo em um veleiro quando ele era criança. E, quando estava em casa, ele adorava ficar no mar —às vezes, pescando, e depois compartilhava o peixe com a família e os amigos.
“Não era que ele pescasse grandes quantidades de peixe. Ele pescava com arpão. Em vez de estar em um barco ou pescando na praia, você está na água com um arpão, com sua máscara, e precisa escolher com sabedoria.”
“Ele costumava ir, pegar o peixe perfeito e dizer: ‘Vou dividir com meus amigos, vamos fazer um ceviche ótimo ou tacos de peixe’.”
Por isso, quando Chumpy entrou na caminhonete com seu arpão em 8 de julho de 2020, Ellidy simplesmente decidiu dar uma volta com o cachorro e caminhar um pouco.
“Cerca de uma hora depois de começar a caminhar, senti uma dor aguda no peito. Não prestei muita atenção, mas ela me fez parar de repente.”
Ela estava um pouco ansiosa porque ia receber uma visita à tarde, e sua mãe havia dito que iria ajudá-la a organizar a casa para os convidados, então ela preferiu voltar e começar as tarefas do dia.
Quando Ellidy estava movendo um sofá pesado que ela ainda tem sobre um tapete marroquino que decora sua sala de estar, sua vizinha Belinda apareceu do nada, como sempre fazia.
“Ela chegou me contando que na página do Facebook da comunidade local estavam falando sobre um homem que havia sido retirado inconsciente do mar, que ele estava na praia para onde Chumpy estava indo, e ela queria saber notícias dele, porque o tinha visto sair pela manhã.”
“Mas eu simplesmente disse: ‘Ai, que triste, obrigada Belinda’, porque para mim, é claro, aquele não poderia ser o Chumpy. Chumpy seria o cara que estava ao lado dele tentando ajudá-lo. Então, me despedi dela.”
Somente dez minutos depois, quando foi tomada por uma sensação terrível, que Ellidy gritou chamando a mãe.
Negação
Ao ouvir a angústia na voz da filha, a mãe de Ellidy desceu correndo as escadas e, sem sequer perguntar o que a vizinha havia dito, pegou as chaves do carro, e as duas se dirigiram até a praia que Chumpy costumava frequentar.
“Lembro que minha mãe parou na rua, nem sequer estacionamos em uma das vagas. Havia carros de polícia, uma ambulância, já havia vários veículos de imprensa lá, e minha mãe simplesmente saiu correndo do carro para a praia.”
“Eu me senti como se estivesse flutuando, como se estivesse caminhando lentamente, sem querer chegar perto do local, como se meu corpo soubesse para onde eu estava indo. Lá encontrei um policial, e perguntei a ele, agindo como se não soubesse o que estava acontecendo.”
Durante a conversa, Ellidy comentou com o policial que Chumpy estava nadando na área, e foi então que ele perguntou a ela sobre as tatuagens do seu parceiro.
“Ele me perguntou se ele tinha alguma tatuagem nas costelas, e eu simplesmente não consegui responder…”
A lembrança da enorme tatuagem de machado que Chumpy havia feito recentemente veio com tanta força em sua mente que a desconectou da realidade.
“Não me lembro de muita coisa a partir daquele momento, mas me lembro de ter pensado que não poderia ser ele, embora a cara do policial tivesse me dito tudo. No fundo, eu sabia. Mas para mim, era como se ele estivesse bem: talvez um tubarão tivesse mordido o braço dele, e ele teria que passar algum tempo no hospital, mas não poderia ter morrido.”
Enquanto mergulhava, Chumpy sofreu o que é conhecido como apagão em águas rasas —uma perda de consciência resultante de prender a respiração por muito tempo—, que poderia ter terminado de forma diferente se não fosse pelo cinto de lastro que ele usava para ajudá-lo a permanecer submerso enquanto pescava, o que acabou sendo responsável por seu corpo inconsciente nunca ter conseguido subir à superfície para respirar novamente.
“Ainda me pergunto o que aconteceu no fundo do mar naquele dia”, diz Ellidy, com a voz ainda refletindo a tristeza que a acompanha desde então.
Contagem regressiva
Em meio à comoção causada pela morte repentina de Chumpy naquela manhã de julho, o irmão de Ellidy recebeu um dos telefonemas mais surreais que já havia atendido até aquele momento.
“Minha melhor amiga, Chloe, ligou para meu irmão e disse: ‘Olha, você precisa comentar isso com a Ellidy’.”
Chloe tinha ouvido falar de um caso de extração de esperma post-mortem e, como estava ciente das tentativas de Ellidy e Chumpy de engravidar, tomou a decisão de mencionar o caso antes das 36 horas que ela sabia serem fundamentais para o sucesso do procedimento.
Ellidy conta que estava sentada no quintal, com a cabeça entre os joelhos, ainda muito confusa com toda a situação, quando seu irmão entrou e comentou com ela sobre o procedimento, e a urgência que eles tinham para realizá-lo.
“Eu olhei para ele, e disse imediatamente: ‘Sim, sim, vá em frente’.”
Com a decisão tomada, a comitiva de Ellidy entrou em ação e, em poucas horas, havia conseguido entrar em contato com um advogado e um médico, que estava pronto para fazer o procedimento.
A extração aconteceu no último minuto —36 horas após a morte de Alex Pullin, um médico conseguiu extrair uma amostra viva de esperma do seu corpo.
“Mas, para ser sincera, quando soubemos que o esperma estava na geladeira, não pensamos mais no assunto por muito tempo. Mal conseguíamos superar o fato de que estávamos sentados, e que Chumpy não estava conosco”.
Pouso forçado
Os seis meses seguintes da vida de Ellidy se passaram no que ela chama de “estado vago e transitório”.
“Passei semanas sem sentir que estava no meu corpo. Eu estava tão fora de mim que ia a reuniões na funerária, com os pais de Chumpy, com minha mãe, com meu irmão, e ficava rindo, usando roupas que nunca teria usado se Chumpy estivesse vivo.”
“Eu sentia que tudo era como um show, como se tudo fosse falso.”
Só quando estava prestes a completar seis meses da morte de Chumpy, que Ellidy sentiu “uma urgência”.
“Senti que precisava ter esse bebê. Foi quase como se tivessem acendido um interruptor, e eu tivesse feito um pouso forçado, compreendendo que Chumpy nunca mais voltaria.”
Era dezembro de 2020.
Ellidy começou a agendar as consultas necessárias para iniciar o procedimento de fertilização in vitro —e começou a discutir a decisão com seus familiares, sobretudo com os pais de Chumpy.
“Eles estavam me incentivando, queriam que eu fizesse isso. Sabiam que nos considerávamos casados, e sabiam que estávamos tentando ter um filho.”
Finalmente, conseguiram três embriões viáveis, e o primeiro deles foi implantado em 31 de dezembro de 2020.
“Era o último dia do ano, e fomos acampar com alguns amigos. Eu estava me sentindo estranha, como se não estivesse bem. Quando fui ao banheiro, saiu um pequeno coágulo. Não foi um aborto, longe disso, mas minha menstruação desceu, e o embrião foi rejeitado”.
O milagre
Ellidy decidiu esperar até fevereiro, um mês após a primeira tentativa, para a consulta em que seria implantado o segundo embrião. Ela foi acompanhada pela mãe para esta consulta.
“Quando recebi o telefonema do centro de fertilização, dizendo que estava grávida, eu gritei. Contei para o meu cachorro, para os pais do Chumpy, para os meus pais, para os meus amigos. Foi um momento tão feliz, tão surreal.”
“Todos nós sabíamos que uma parte dele estava crescendo dentro de mim, trazendo ele, de alguma forma, de volta à vida.”
Como Chumpy havia sido uma figura pública, algumas pessoas começaram a fazer perguntas sobre a gestação de Ellidy, quando ela anunciou que estava grávida quase um ano após a morte de seu companheiro.
Foi quando ela começou um podcast que fala sobre a logística e o debate ético que existe em torno da gravidez por meio da extração póstuma de esperma.
Em 25 de outubro de 2021, nasceu Minnie Alex Pullin.
“Ela era igual a ele. A primeira coisa que minha mãe e eu notamos, quase imediatamente, foi que eram os olhos dele. Foi um momento tão lindo, emocionante e louco de fechar um ciclo.”
Minnie também chegou na hora certa para se despedir do avô: logo após a morte de Chumpy, o pai de Ellidy foi diagnosticado com câncer no cérebro. Ele morreu em janeiro de 2022.
“Meu pai estava nas últimas, e dormia ao lado dela por praticamente oito horas seguidas. Eu chegava para vê-lo, sentava ao lado do papai, e lá estavam Minnie e papai descansando juntos. Foram semanas muito lindas.”
Hoje, a vida de Ellidy segue após um longo período de perdas e surpresas, com um propósito muito claro, agora que ela tem Minnie ao seu lado: “Acho que minha vida é muito caótica com uma menina de três anos. Estou sozinha fazendo tudo isso, e é bem difícil. Mas estou bem.”
“Sinto falta do Chumpy o tempo todo, mas a vida se desenvolve e cresce em torno da dor. Estou muito ocupada com a Minnie, com o trabalho. Penso nele todos os dias.”
Em sua casa em Queensland, na Austrália, Ellidy e Minnie se sentam para olhar o mar ao entardecer, e Ellidy diz à filha que seu pai está lá, em algum lugar sob as ondas. E quando a noite cai, e as estrelas aparecem, Ellidy coloca Minnie na cama com a promessa de que ele a observa do céu, e que para vê-lo basta ela adormecer e sonhar.
“E acho que eles se veem. Quando se aproxima das 18h, ela começa a dizer que quer vê-lo, e eu já sei que é hora de dormir.”
Esta reportagem foi adaptada de um episódio do programa de rádio Outlook, da BBC. Para ouvir a versão original (em inglês), clique aqui.