O presidente Donald Trump comete erros básicos em sua política tarifária que levarão os Estados Unidos brevemente a uma recessão. No longo prazo, as medidas do republicano fortalecerão a China e a Europa, que ocuparão cada vez mais o espaço que está sendo aberto pela maior economia do mundo.
A previsão é do brasileiro Marcello Estevão, 59, diretor-gerente e economista-chefe do IIF (Instituto de Finanças Internacionais, na sigla em inglês), que reúne 400 dos maiores bancos e instituições financeiras do mundo em uma espécie de Febraban global.
Ex-diretor de Macroeconomia, Comércio e Investimentos do Banco Mundial e com passagens pelo Fed (o banco central dos EUA) e Fundo Monetário Internacional, Estevão acredita que Trump e os republicanos pagarão caro nas chamadas “midterm elections”, em novembro de 2026, quando estarão em jogo 33 vagas no Senado e as 435 da Câmara.
Tem alguma chance de dar certo a estratégia do governo Donald Trump de reindustrializar os EUA e diminuir seu déficit comercial com a imposição de tarifas contra países?
É uma aposta equivocada, porque uma reindustrialização não traria os empregos que na cabeça do presidente são bons. Ele está pensando com a cabeça da década de 1960 ou 1950. Aqueles empregos não existem mais. A indústria hoje é supermecanizada, robotizada. É por isso que o emprego industrial como proporção do PIB tem caído em todas as sociedades avançadas. É um fenômeno tecnológico, que não tem nada a ver com o comércio.
É um diagnóstico errado achar que, colocando tarifa, você vai atrair indústria, e essas indústrias vão criar muitos empregos. Isso não acontece nem na China, onde a produção industrial também é robotizada e mecanizada. Como eles têm muita indústria, há muito emprego industrial, mas o progresso tecnológico também está presente na China. Não há a menor chance de isso dar certo.
Qual o problema deste governo? É só a cabeça de Trump ou seus assessores pensam como ele? O secretário do Tesouro, Scott Bessent, entende de macroeconomia, trabalhou em hedge funds. Como o entorno do presidente embarca nessa?
O poder é muito tentador, e essas pessoas estão associadas a uma corte conservadora que optou por apoiar o presidente Trump por causa da popularidade dele. Essa política vem da cabeça do Trump, e vejo essas pessoas tentando justificá-la, inclusive de maneiras diferentes e contraditórias.
Justifica-se usar tarifa como um modo de conseguir mais receita fiscal. Se isso é verdade, qualquer teoria de taxação diria que você tem que maximizar a base dessa taxação. Então, o seu objetivo não é diminuir a quantidade de importação, é de maximizar a renda tributária.
Outros dizem que isso é para melhorar o déficit comercial. Se é para reduzir a importação, isso vai contra o primeiro objetivo [aumentar a receita fiscal com as tarifas]. E se é para aumentar o número de empregos, isso vai contra diminuir a importação, pois, para produzir, é preciso importar e produzir a um custo razoável. Portanto, essas razões ditas por aí são inconsistentes.
A verdade é que o presidente Trump acredita que tarifa é algo bom. E as pessoas ao redor dizem “sim, senhor”. Está acontecendo e vai acabar mal, em particular para a economia americana. Porque o governo está criando um choque de oferta. É similar ao choque do petróleo na década de 1970.
A diferença é que, lá, ele afetou setores particulares. Mas as tarifas são gerais e afetam todos os setores, todos os tipos de importação. Como aprendemos com a América Latina, isso não funciona. No médio e longo prazo causa queda de produtividade e de competitividade, o que é ruim para todo mundo.
Porque a questão de base é o fato de os Estados Unidos consumirem mais do que são capazes de produzir. Por isso há déficit, certo? E se os americanos quiserem agora continuar consumindo, vão pagar mais caro, inflacionando a economia, não?
O interessante do ponto que você coloca, o que eu já fiz milhões de vezes, é que ele é trivial. Mas as pessoas não entendem, e não é nem economia. É uma questão de contabilidade. Essa mesa na minha frente, por exemplo: alguém tem que produzir. Se eu não produzo, mas eu demando, essa mesa vai vir de fora. Se eu coloco uma tarifa sobre a mesa, e eu preciso muito dessa mesa, eu vou comprar de qualquer jeito, mais cara. Mesmo que eu desista da mesa e compre outras coisas, elas também estão tarifadas. Portanto, o déficit não cai, ele só muda de característica.
O déficit da balança comercial é simplesmente uma função da diferença entre o quanto você poupa e o quanto você investe. Poupança você considera a renda menos consumo do governo e das pessoas. Aí você ainda tem o investimento do governo e das empresas. Se você investe mais do que poupa, o déficit comercial vai ter que fechar essa conta.
Mas se você botar uma tarifa muito alta, você ou não exportar ou vai ter que consumir menos. Aí a poupança aumenta, lógico. Mas como isso se chama? Recessão. Eu prevejo uma recessão para os EUA no segundo trimestre e no terceiro trimestre desse ano.
Do ponto de vista do Fed, ele deve começar a cortar a taxa de juros provavelmente em julho ou setembro. Pois vai demorar um pouco para analisar os impactos inflacionários e de atividade. Acho que, no final das contas, o impacto na atividade vai ser uma coisa mais importante para o Fed do que o inflacionário, que vai tender a ser significativo, mas provavelmente vai ser interpretado como temporário.
Mas, em termos de desaquecimento ou recessão, será algo forte?
É forte porque a economia americana vem com uma saúde impressionante. Em dezembro falávamos de como a economia americana está supersaudável e estávamos muito preocupados com a Europa. Isso mudou, porque na Europa teve esse impulso, em particular na Alemanha, para o governo gastar mais, investir em coisas importantes como infraestrutura e defesa.
Nos Estados Unidos foi o oposto, com toda essa incerteza. Vai cair o investimento, e estamos vendo isso no mercado financeiro. As pessoas estão muito pessimistas, com razão. Nesse sentido, é uma mudança grande.
Mas mesmo que seja uma recessão pequena, os EUA cresceram 2,8% em 2024. Se entrar no negativo é uma queda grande para uma economia de quase US$ 29 trilhões, certo?
É muito preocupante. Espero que eu esteja errado, mas eu não consigo ver como é que não vamos ter certamente vários meses de crescimento negativo ou nulo, o que, de novo, para os Estados Unidos isso é uma recessão. E é um autoflagelo, algo basicamente direcionado por uma série de políticas de uma visão de mundo equivocada, das décadas de 1950 ou 1960.
Qual deve ser a reação do público, não só dos eleitores de Trump, mas de seu eleitorado? Porque são duas vertentes. A primeira é uma perda de poder aquisitivo com o aumento de tarifas. A outra, de destruição da riqueza dos americanos via queda da bolsa.
Primeiramente, para deixar bem claro, o impacto da inflação vai ser realmente muito imediato. Mas fico na dúvida com o longo prazo, se vai afetar a expectativa de inflação lá na frente.
Porque a tarifa sobe uma vez só, certo?
Exato. Aí, vamos ver. Vai demorar alguns meses para o Fed chegar a um diagnóstico. Mas mesmo que você ache que há coisas que os Estados Unidos possam produzir, dentro daquilo que hoje o país importa, essas coisas vão ser mais caras. Por quê? Porque se não fossem, elas já estariam sendo produzidas aqui. Tem coisa que não tem a menor chance de os Estados Unidos produzirem. Não vão produzir café, banana. E as tarifas foram para todo mundo.
Eles pensam como se fosse algo factível ter uma balança comercial equilibrada com todos os países. Isso não faz o menor sentido. Um país pequeno que produza banana vai ter um superávit comercial vis-a-vis os Estados Unidos. Isso não tem nada a ver com política comercial errada.
Tem coisas que nunca vão ser produzidas, como camisetas. Não tem mais espaço. Isso vai ficar mais caro. Vamos ter de continuar importando de Bangladesh e pagando mais. Essa política tarifária não foi feita de modo pontual, por questões de segurança nacional. É uma coisa geral.
E vai afetar todo mundo. Eleitor de Trump ou não. Parte dos eleitores dele não são trumpistas, mas pessoas que não queriam a continuação do governo do Joe Biden. De certo modo, com razão, pois o governo cometeu vários erros. Essas pessoas vão se opor ao Trump, e é um contingente significativo.
A parte mais radical trumpista, eu diria que soma entre 20% e 30% do eleitorado. Então, acho que o presidente Trump está superestimando sua popularidade, a capacidade de se manter no poder ou de eleger um sucessor em 2028. Ele ganhou a eleição por um pouquinho. Teve o mesmo número de votos, basicamente, de quando concorreu contra o Joe Biden. A diferença é que a Kamala Harris teve quatro milhões de votos a menos. E esses quatro milhões de votos voltarão na próxima, provavelmente contra Trump.
No médio prazo, se essa política continuar, e parece que vai por um bom tempo, Trump vai perder de longe as “midterm elections” no final de 2026.
Essa política de fato causará uma mudança de eixo na influência americana no mundo e uma ascensão maior da China?
Com certeza. E não é só da China. Da Europa também. Imagine o que a política do governo Trump está fazendo os europeus pensarem. Eles estão numa região rica, com 450 milhões de pessoas, três vezes mais que a população da Rússia. Muito mais rica em termos de renda per capita do que a Rússia, que tem um PIB menor do que a Itália, e potencialmente muito mais poderosa do que a Rússia.
Mas era uma região que estava dependendo dos Estados Unidos para sua proteção porque não queria investir em defesa. Agora, isso mudou. A Europa tem muito mais capacidade econômica, populacional e tecnológica do que o seu inimigo imediato ali na fronteira [Rússia] e vai começar a investir em defesa. Não precisa mais dos Estados Unidos.
Já na segunda região mais rica do mundo, a influência americana caiu muito. A China está percebendo a mensagem americana, de que a Ásia é da China, as américas são dos Estados Unidos e a Europa é dos europeus, não da Rússia.
A Rússia tem poder geopolítico, tem um grande exército e tem bomba atômica. Mas a Europa pode produzir bomba atômica rapidamente, com as capacidades da França e do Reino Unido, por exemplo. E a Alemanha tem uma capacidade financeira estupenda, ainda mais agora que diminuiu as restrições para o gasto público.
Esse é o mundo que a política de Trump está criando. Ele está dando de bandeja a Ásia para China. O que estamos vendo agora? Reuniões entre Japão, China e Coreia para discutir comércio. O Japão e a China eram inimigos até há pouco. Agora, há toda uma conversa ali. A China não vai abandonar a globalização, que só vai mudar de aspecto.
O mundo vai aproveitar esse espaço dado pela sociedade americana, que votou no Trump, e os Estados Unidos vão perder. Temos que lembrar que os Estados Unidos correspondem a 15% do comércio internacional. Não é nem perto de 50%. Essa política vai ser ruim para todo mundo, mas talvez seja pior para eles.
E tem aquele ditado muito brasileiro que eu adoro: “Jacaré que dorme na beira do rio vira bolsa de madame”. Ninguém vai querer virar bolsa de madame. E vão começar a fazer negócio, vão se virar. Creio que, no final das contas, o mundo vai ser mais pobre e haverá menos comércio entre os Estados Unidos e o resto do mundo. Mas vai haver mais comércio entre outras partes do mundo.
MARCELLO ESTEVÃO, 59
Diretor-gerente e economista-chefe do IIF, é Ph.D. em economia pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT) e professor adjunto na Georgetown University. Foi diretor de Macroeconomia, Comércio e Investimentos do Banco Mundial, membro do Fed e do FMI e secretário de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda no governo Michel Temer.