“Você não tem cara de alcoólatra” —essa é uma das frases que mais escuto quando revelo minha doença. Me intriga. Alcoolismo tem cara? A resposta é não, claro que não. Mas o preconceito e a ignorância são parceiras da doença. É difícil explicar a minha condição. Quando recuso uma bebida e a pessoa se surpreende, acho mais fácil dizer que tenho intolerância ao álcool. Cola. Afinal, hoje em dia é muito comum ter intolerância —a glúten, a lactose, a cafeína…
Um alcoólatra não é necessariamente uma pessoa que está jogada na sarjeta com um corote na mão. Esses existem também, claro. Mas o alcoolismo é maior que a aparência e é mais profundo do que “um problema com bebida”.
Sofri muito lutando para parar de beber. Nunca fui de beber pouco, muito pelo contrário. Foram anos negando o alcoolismo, justamente por não me reconhecer como alguém que precisava de ajuda nesse sentido.
Uma vez um médico da família falou para minha mãe que achava que eu era alcoólatra. Foi apedrejado por todos. Tudo bem, eu causava quando bebia, tinha um comportamento escandaloso, digamos, mas daí a me chamar de alcoólatra era demais. Ou seja, eu não era a única a fechar os olhos para a doença. Todos ao redor demoraram para cravar o diagnóstico. Na verdade, eu só me reconheci alcoólatra quando frequentei uma sala de Alcoólicos Anônimos. E hoje, com alguns anos de recuperação, tenho certeza de que apenas um alcoólatra pode salvar outro. Não há medicina que entenda melhor o doente do que o próprio espelho. A dificuldade para me recuperar se devia sobretudo por acreditar que a bebida era essencial para viver.
Filha de um alcoólatra, sempre foi muito comum na minha família o hábito de beber. Quando eu era criança tinha um bar cheio de bebida na minha casa. Era parte da nossa rotina a presença de garrafas nas refeições. Com isso, cresci, mesmo que inconscientemente, com a ideia de que a bebida era fundamental. Quando estava doente, com a garganta inflamada, tomava leite quente batizado. Ajudava, segundo minha avó. São aquelas crenças incutidas numa menina que nasceu nos anos 1980.
O álcool nunca me foi apresentado como vilão, por mais que meu pai já manifestasse tantos problemas. Nunca ouvi ninguém, nem minha mãe, nem meus irmãos dizerem que ele era alcoólatra, com todas as letras. Parece que há um certo medo de sentenciar.
Como um pai de família que trabalha de segunda a sexta pode ser alcoólatra? E a filha dele então, que é bem vestida, cheirosa e super-educada? Como pode? O alcoolismo é silencioso justamente por não ter cara, não ter tipo, não ter nível social, não ter nenhuma característica como pré-requisito.
Comigo foi assim. Comecei a acompanhar meus irmãos nas baladas, com uns 13 anos, e ali fui experimentando os primeiros drinques. Não tinha mal nenhum. Isolado, esse fato pode passar batido. No meu caso, não. Foi a faísca para acender minha doença.
O fato de eu ser mulher e funcional, estudando e trabalhando, fez com que eu não atraísse os holofotes o tempo todo. Fugindo de olhares julgadores, bebi muito. Por fora, bela viola, por dentro, pão bolorento. Outro ditado que minha avó adorava dizer.
Pois bem, eu sempre fui uma menina adorada por todos e com a aparência saudável. Com pouco menos de 40 anos é que fui parar definitivamente com a bebedeira. E com essa idade meu aspecto não era de alguém no fim da linha, de um trem descarrilhado. Por fora, né? Por dentro o álcool tinha consumido tudo e pude experimentar o inferno. Poucos testemunharam meu sofrimento extremo.
Por isso, hoje é difícil que não se espantem quando digo que sou alcoólatra. Como pode? Tão limpa! Pois é, a sujeira está na minha lembrança e é ela que me impede de sequer comer alguma coisa cuja receita inclua bebida.
A observância radical é essencial para mim. Em quatro paredes já fui a lugares horríveis. Quero me ver livre do consumo desenfreado que o álcool provoca em mim. E tenho conseguido.